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Bota a fala

Bota a fala

Marcos Carvalho Lopes[1]

O hip-hop é um grande passo cultural, sem precedentes, dado por talentosos jovens negros pobres nos guetos do império, que tem transformado a indústria e a cultura do entretenimento tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo. A ironia fundamental do hip-hop é que se tenha começado a percebê-lo como um fenômeno niilista, machista, violento e de ostentação, quando na realidade o que lhe deu origem foi uma feroz repugnância contra as hipocrisias da cultura adulta, uma indignação em relação ao egoísmo, pela insensibilidade do capitalismo e pela xenofobia. 

Cornel West

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Para dar de comer aos olhos daqueles que tem curiosidade sobre o Bota a fala e dos que vão, a partir dessa leitura, procurar conhecer o grupo de hip-hop em que se materializa essa palavra; escrevo.

Bota a fala é o nome de um projeto de extensão – que é também de pesquisa -, que usa o hip-hop como ferramenta pedagógica para uma educação mais democrática. Em verdade, o projeto surgiu da e pela iniciativa de Magnusson da Costa,o Magno TWD e Suleimane Alfa Bá, o S_many, ambos estudantes bissau-guinenses da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Eles eram rappers em Guiné-Bissau, mas curiosamente, apesar de apreciarem o trabalho um do outro, não haviam se reconhecido como cantor: Magno TWD gostava do hip-hop melódico e romântico de S_many, mas não sabia que o autor era o seu colega Suleimane[2]; já S_many gostava das composições polifônicas de crítica dos costumes do 2MB[3], grupo de Magno, mas não conhecia pessoalmente o autor. Convivendo como estudantes em São Francisco do Conde puderem aprender isso que tinham em comum.

Ambos foram meus alunos em 2014, se interessaram por filosofia e participaram de alguns minicursos e oficinas em que falei sobre a importância da música popular no Brasil como forma de pensar o país, numa narrativa que falava da dimensão utópica da canção e que “terminava” com o “fim da canção” representado pelo hip-hop, que, politicamente trazia uma novidade radical de trazer vozes marginais falando diretamente de política em primeira pessoa, da comunidade negra assumindo uma postura de reivindicação não cordial etc. Nestas conversas fiquei sabendo do trabalho de Suleimane e Magno e da vontade deles de fazer hip-hop por aqui.

Topei o desafio: minha dúvida era sobre o que poderíamos fazer sem equipamentos. Não sabia que si segu falau no fertcha n utru, sibi i masa pedra.  Sem qualquer experiência perguntei sobre como compunham em Bissau: simples, pegavam o beat, ouviam pelo celular, e criavam a letra, desenvolviam seu canto etc. Já no primeiro ensaio a coisa começou a render e mais gente veio participar – Tania Brasiguis, Dito Buanh SD, Lauro, Chito, Kadija etc. – iniciando um algo que precisava de um nome.

O escolhido foi “bota a fala”, expressão que encontrei no glossário crioulo do livro de poesias de Odete Semedo, No Fundo do Canto que explica: “Botar a fala/Bôta fala – lançar a voz, anunciar, dar a sua opinião”. Essa é uma expressão que qualquer brasileiro poderia entender e também estranhar. Botar a fala me parecia ser o que faziam a partir dos beats, não somente expressando suas opiniões, mas também pedindo e dando razões. Pedir e dar razões é o jogo da filosofia: razão é linguagem, é palavra, é fala que argumenta. Contudo o sentido da expressão poderia ser algo como “conversa fiada”, falas que não falam, mas são meros jogos retóricos sem valor; também a palavra que sagra as oferendas, uma oração. Caberia ao Bota a fala dar sentido para suas palavras. Cada qual sendo Tcholonadur –intérprete – de seu futuro e da invenção da UNILAB em São Francisco do Conde.

Os poemas de Odete Semedo em No Fundo do Canto, funcionam como tcholonadur da dor da guerra civil que abalou Guiné-Bissau entre 1998-1999 – como explica Moema Parente Augel. Numa de suas partes, chamada “Consílio dos Irans” existe alguns poemas em que se promove um diálogo entre Bissau e Guiné, partes da nação em conflito. Um deles se chama Guiné Bota a Sua Fala e termina dizendo: “O fim dessa desavença/ é ainda puro engano/ Muita mentira haverá de pairar/ muita calúnia misturada/ ao mesmo ar/ que nossos filhos respiram/ Isso é mais que uma guerra//O engano estará por detrás/ da máscara de cada um/ não haverá fingimento/ apenas escassa alegria/ muito arrependimento/ a nosso música… elegia/ e a cada um sua fatia”. Findo o conflito, a arte permanece nos ensinando por traduzir o silêncio da dor e esperanças de um povo.

Essa tarefa de tradução tem sido muitas vezes desenvolvida pela música negra, isso acontece nas obras mais interessantes do jazz, samba, blues, rhythm-and–blues ou hip-hop. A UNILAB precisa inventar caminhos para a integração, superar divisões internas e multiplicando formas de convivência. A convivência entre pessoas de diversas nações que tem o português como língua oficial precisa ser construída de um modo em que as diferenças sejam minimizadas, e o pressuposto da tolerância se torne efetiva hospitalidade, com abertura para aprender com o outro e se autoaprimorar. O hip-hop pode oferecer uma forma de entretenimento para os jovens, em performances que ritualizam e adensam o sentido comum, além de resistir e denunciar formas pobres de existir (marcadas pela xenofonia, preconceito, sexismo etc.). É com esta esperança que boto estas palavras e lhe convido para saber mais e ouvir o Bota a fala.

 

Diante da novidade do preconceito, a primeira canção do grupo Bota a fala foi direto ao ponto. A letra diz:

Eu sou negro

Eu sou preto

Eu sou africano

Com muito orgulho

Nada nos possa deter mesmo que muitos nos diga que não

Sempre de cabeça erguida que vamos conquistar

Se dantes éramos levado para a Europa

Trazidos para as Américas

Usados como cobaias

Trabalhando como escravos

Mas agora, é a hora, da nossa afirmação

Negro no poder

Negro no poder

Por que de tanto preconceito?

Por que de tanta discriminação?

Podemos ter diferenças na cultura ou na cor da pele

Mas todos nós pertencemos a uma única raça “a raça humana”

Pra tu que es negro

Pra tu que não é racista

Ponha as mãos no ar e grita numa só voz

Não ao preconceito!

Não à discriminação!

Não ao preconceito!

Não à discriminação!

 

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

 

O racismo é mau, quem negar leva tau-tau,

Eu sou africano, 100% black power

Tipo Tina Turner,

Com uma voz gigante,

Venho de São Tomé, pois aqui somos irmãos, vês?!

 

Sinta a pressão dessa pura mensagem,

Arte e imaginação, sentido sem bandidagem.

UNILAB nas costas, vamos abrir as portas,

Ignorando os preconceitos, firmando novos conceitos.

 

Sincronia lusófona em terreno brasileiro,

Harmonia autêntica para o mundo inteiro,

Clap-clap, batam as palmas, reflitam sobre o assunto,

Não a discriminação, é esse o bom conteúdo.

 

Ser negro é bom, transmito isso no som,

Independentemente da cor, escutem bem esse louvor.

 

Repitam aqui o refrão, deixa entrar no coração,

Somos a equipa de ação, prontos para a intervenção… ya!”

 

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

 

 

não viemos acorrentados em navios negreiros

como no século passado não…

chegamos aqui, uns de terno e gravata,

relógio no pulso, cabeças raspadas, sei lá…

se isso é que chamam de civilização.

 

que cara é essa brow? sou diferente?

sou. pra frente eu vou.

qual é a parte da minha historia que você não entendeu?

por ser diferente não me faz teu inimigo,

nossas diferenças que fazem do mundo, mundo.

preciso de ti, sei que precisas de mim. brow, sacou?

 

Brasiguis confirma:

 

Negro ou negra

também pode ser

pai ou mãe

por isso pode ter

a diferença

na cultura ou na cor

mas que na verdade

somos todos iguais

 

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor

Unidos pela história somos todos iguais

 

 

Somos todos iguais , meu irmão deixa de mania

Ouça bem este beat rap, este flow

Dito Buanh SD, pronto eu estou aqui

 

-”eu não sou ninguém brother”

“vai, olha para mim, homem como tu, como qualquer um”

Homem malcriado, deixa de maldade não me trate assim, vai

Esquece minha raça, minha fala

Não importa se sou pobre e vivo na senzala ou no gueto

O que é certo mem aqui

Todos somos iguais

Vai, respeita seu brother,

bora!

 

Baixe a canção em MP3:PRECONCEITO

Site do grupo: www.botaafala.filosofiapop.com.br

Grupo no facebook: https://www.facebook.com/groups/1642839792604560/?ref=bookmarks

[1] Marcos Carvalho Lopes é professor na UNILAB, filósofo, autor dos livros Canção, estética e política: ensaios legionários (Mercado de Letras, 2012) e Máquina do Medo (PUC-GO,2013), editor da revista Capoeira – Humanidades e letras, desenvolve juntamente com Murilo Ferraz o podcast filosofia pop (www.filosofiapop.com.br); é coordenador do projeto Bota a fala: hip-hop, reconhecimento e paideia democrática.

[2]S_many, NGOSTA DI BO http://www.youtube.com/watch?v=hSgBQ9adBG8

[3] Por exemplo em Kobra Renda, descreve o drama de uma família é cobrada pelo aluguel atrasado http://www.youtube.com/watch?v=Ezmf4lo9SCE

Marcos Carvalho Lopes

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