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Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba…

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Num artigo de 1982, “On afro-american music: from bebop to rap”, Cornel West descreve uma mudança de valores que coincide com a ascensão do hip-hop: o espírito da música afro-americana, presente nos spirituals, blues, jazz etc. dependia da esperança de que houvesse alguém que nos oferecesse cuidado – Deus, vizinhos, familiares; pois é justamente essa pressuposição de transcendência que é o alvo de crítica de cantores de rap. Se a tradição da música negra é marcada por transformar a dor em resistência, buscando superar e resistir aos valores que causam opressão, o hip-hop surgia em muitos casos parodiando, ironizando e subvertendo este tipo de anseio, desfigurando qualquer dimensão utópica e mostrando o avanço do niilismo. Nem todo hip-hop cairia no jogo do mercado, mas, seu desafio estaria justamente em fornecer para as populações pobres e trabalhadores, perspectivas morais, análises sociais e posicionamentos políticos que justificassem sua condição de herdeiros do fogo profético negro.

Esta afirmação, feita logo no início do desenvolvimento do hip-hop, é profética e pode ser recontextualizada. O samba brasileiro – apesar de ter sido tomado como símbolo oficial da brasilidade mulata – também tem muitas vezes um espírito de transcendência e um tipo de esperança que tem sua origem na transformação do sofrimento e da dor de negros pobres trabalhadores em canção. Contudo, na ausência de um momento de confronto, como a luta pelos direitos civis, a afirmação negra através da canção talvez só tenha adquirido “autoconsciência” com o rap de Racionais, Sabotage etc. que questionavam frontalmente o espírito cordial, desenvolvendo seu trabalho de modo independente dos grandes esquemas de gravadora, falando da periferia para a periferia.  Essa hipótese é logo alvo de questionamento daqueles que acusam o rap de oferecer uma “autoconsciência” importada, americanizada, trazendo para o país a retórica de um acirramento de diferenças que por aqui não fariam sentido.

Isso só mostra que a retórica da consciência não é a mais adequada, assim como não é adequada essa acusação de “colonização mental” justamente por parte daqueles que querem defender o hibridismo e reconhecem a dimensão global da cultura de massa.

Cornel West percebia a decadência econômica e ausência de perspectivas para os jovens norte-americanos como elementos que justificavam o discurso e a postura hip-hop, como um modo de vida de resistência justificado dentro dos guetos das grandes metrópoles. Ora, este elemento contracultural e de resistência repercutiu em diversas periferias do mundo, criando discursos que procuram contextualizar as questões que interessam para a comunidade local, deixando em segundo plano os anseios modernos de originalidade e inovação, para se focar na comunicação e diversão.

No Brasil, a inegável melhora na qualidade de vida da população mais pobre, mudança no mercado musical, distanciamento em relação ao momento de Ditadura, também geraram efeitos estruturais que repercutiram no hip-hop. É este quadro diferente que justifica, segundo Ricardo Teperman em Se liga no Som, o surgimento de uma “segunda geração do hip-hop”, de Criolo, Emicida etc., que parece muito mais tranquila para aproximar-se e redescrever as tentativas de “representar o país” – que marcam a MPB – em discursos e posicionamentos de várias minorias. Se a origem é o gueto,tumblr_o0kervZMSj1rj5f6fo1_400 é diferente o grau de escolaridade (e, algumas vezes o gênero) de quem toma o microfone. Isso não significa necessariamente maior consciência, mas talvez maior capacidade de mimetizar/reconhecer os valores de distinção que marcam a classe média, maior abertura para dialogar com outros ritmos e artistas; uma postura menos épica e mais profissional em relação à participação na mídia. O desafio continua semelhante aquele descrito por Cornel West: o emicida-e-martinho-dividiram-cancoes-ao-som-de-rap-e-sambade manter algum horizonte utópico de transcendência com valores que confrontem os preconceitos e apontem para a construção de uma sociedade mais justa. O perigo é o de torna-se mero produto, sem conexão com os problemas sociais, raciais, políticos do cotidiano de quem vive nas periferias.

Para deixar uma nota divergente: sinto falta de algum estudo que coloque Negritude Jr., Raça Negra, Só pra contrariar e outros grupos de pagode dos anos 90 no mesmo planeta que os Racionais. No futuro com certeza vai ser preciso resgatar, mensurar e reconhecer a sincronicidade.

Talvez nem todos queiram ser profetas, melhor ouvir – de novo – Complexo de épico  de Tom Zé (agora na voz de Regina Machado)…

Marcos Carvalho Lopes

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