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Umberto Eco: futebol e a epifania do caos em um universo sem Deus

Escrevi minha dissertação de mestrado em 2007 sobre o debate entre Umberto Eco e Richard Rorty, em grande parte descrito no livro Interpretação e Superinterpretação. Eco não era um de meus autores favoritos (meu projeto de mestrado era sobre Ortega y Gasset), mas na ausênsia de orientadores possíveis, aceitei o desafio. Pensei que no Doutorado continuaria essa pesquisa mostrando a forma distinta como estes autores abordavam a “verdade da ficção”, mas logo me cansei do autor italiano, que, como filósofo, era uma figura menor, antiquada, redundante, cansativa e deslocada – uma engrenagem que girava sem fazer parte do mecanismo. A grande virtude de Eco talvez esteja nos seus trabalhos teóricos iniciais, na tentativa de se aproximar da cultura popular… mas na medida em que -conseguiu um emprego como professor titular – buscou tornar essa aproximação “científicamente fundamentada” através da semiótica, tornou-se mais e mais hermético. Apesar disso, destacava-se pela capacidade de oferecer catálogos de anedotas interessantes e “amarrá-las” na forma de texto. Infelizmente, depois do sucesso do romance O nome da Rosa, muitas das obras teóricas que Eco escreveu eram pouco originais colagens de textos com exemplos que haviam “dado certo” e, no caso, de Kant e o Ornitorrinco, uma grande confusão de quem perdeu o rumo e sabe disso (o gato de Alice no País da Maravilhas neste jogo foi Richard Rorty). A crise de Eco foi melhor enfrentada em seus romances, mas sua máquina narrativa presupunha o desvelamento de algum tipo de verdade, uma epifania com gosto de sagrado. Chegou a dizer que os autores reais deveriam morrer para não atrapalhar o caminho de interpretação de sua obra, mas batia o pé, negando a validade de interpretações que considerava excessivas (algumas, justamente por mostrarem aquilo que ele calava – seus preconceitos, prejuízos, pontos cegos etc.). Talvez agora que os textos estão livres, ele possa ser um romancista melhor!   

Publico aqui trecho de um ensaio que fará parte da coletanea Religiosidade Brasileira e Filosofia (que organizo junto com Ronie Silveira), que deve ser publicado em breve. 

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A rejeição que Umberto Eco tem pelo futebol não é simplesmente o resultado do ressentimento de um jovem intelectual, que como ele, desde sempre revelou-se um perna de pau – daqueles que é o último a ser escolhido na formação dos times, e que, quando joga, apesar do esforço, demonstra sua inabilidade fazendo gols contra ou chutando a bola tão longe que coloca ponto final na brincadeira. Ciente de sua incapacidade esportiva, o jovem Eco se esforçou para seguir o futebol como ritual de participação no universo masculino, para gostar do esporte como torcedor, indo para as partidas com seu pai. Contudo, esta posição de observador, com distanciamento teórico, não modificou sua avaliação, mas a fez ter sentido metafísico; para ele “desde sempre, o futebol está ligado, (…) à ausência de sentido e à inutilidade das coisas, ao fato de que o Ser outro não possa ser (ou não-ser) outra coisa a não ser um buraco. Quem sabe por isso mesmo eu (único, creio, entre os viventes) sempre associei o futebol com filosofias negativas” (ECO, 1984: p.228).

O espetáculo futebolístico colocou em questão pela primeira vez os pressupostos teológicos da formação católica de Umberto Eco. Isso aconteceu como uma epifania negativa: “um dia, enquanto observava de longe os movimentos insensatos lá em baixo, no campo, senti como se o sol alto do meio-dia envolvesse numa luz enregeladora homens e coisas, e como se diante de meus olhos se desenrolasse um espetáculo cósmico sem sentido.” (ECO, 1984: p.227-228).

A “ausência” de sentido que Umberto Eco percebe no futebol é resultado de uma avaliação que pressupõe que cada coisa deve possuir uma destinação racional, uma finalidade que a justifique. Isso porque no catolicismo, em sua matriz tomista – que é a doutrina oficial da Igreja –, não há oposição entre fé e razão: se a essência precede a existência, como justificar racionalmente o futebol? Qual sentido haveria em dar existência aquela disputa vazia? Se o jovem católico não conseguiu racionalizar o espetáculo futebolístico, mais tarde enquanto teórico, em ensaios do livro Viagem na irrealidade cotidiana, traduziu o nonsense em termos de crítica cultural, cunhando uma condenação para este esporte parecida com aquela que Platão usou para expulsar os poetas de sua cidade ideal: o mal estaria em nos afastar em dois graus da realidade. Se o jogador pode justificar sua participação em uma partida de futebol afirmando tratar-ser de uma atividade física e lúdica em que despende energia e agressividade, essa mesma argumentação se degradaria com a transformação do jogo em esporte, tendo por fim a de competição e lucro; pior em um nível é a situação de quem esta na torcida e passivamente assiste a atuação dos atletas; contudo o absurdo ganha uma terceira potência com a multiplicação de discursos e debates em torno dos jogos, que, com seriedade alienada, ocupam o lugar do próprio futebol, funcionando por si mesmos (as mesas redondas esportivas geram debates e falsas polêmicas que se multiplicam para além do jogo, de tal modo que o assunto deixa de ser o futebol para ser a conversa sobre aquilo que se conversa sobre futebol). O bate-papo esportivo toma o centro da atenção em lugar das questões políticas e sociais, energias que poderiam ser transformadoras, são despendidas em discussões, brigas, lágrimas e celebrações alienadas. O futebol surge como um ritual de irrealidade, uma celebração antirreligiosa de alienação indulgente, “o lugar da Ignorância total” (Idem: p.226).

Apesar desta experiência como “testemunha do caos”, Eco somente aos vinte e dois anos abandonou sua fé católica, mas fez isso de uma forma curiosa e parcial: “Não acredito que haja verdadeiros ateus […]. Digamos que, se os outros romancistas têm um problema com Deus, no meu caso é Deus que tem um problema comigo. É claro que isso é uma ironia, porém gostaria de explicar. Eu era católico, perdi a fé, mas há uma resistência profunda entre não crer mais em Deus e dizer que Deus não existe. Há uma resistência profunda contra essa blasfêmia. É melhor viver como se Deus não existisse. É uma condição de moralidade absoluta, kantiana […] Se soubéssemos que Deus existe, ou que Deus não existe, não haveria nem filosofia nem teologia. (ECO, citado por SCHIFFER 2000: p.80).

Destaco dois elementos dessa fala de Eco: (1) a manutenção de uma concepção de sagrado, inclusive em sua dimensão ritual; assim como, (2) a afirmação da necessidade, epistemológica e moral, de uma forma de verdade convergente de caráter universal – ainda que como um ideal. O primeiro destes pontos é de fácil confirmação, já que o filósofo italiano nos debates presentes no livro Em que crêem os que não crêem? afirma uma religiosidade laica: “porque acredito firmemente que existem formas de religiosidade, e logo sentido do sagrado, do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal e providente” (ECO, 1999: p.80). Eco, também em Viagem a irrealidade cotidiana, diferencia duas ideias de Deus que ocupariam o imaginário cristão: (1) uma perspectiva em que Ele é a plenitude do ser, guardando em si a convergência de tudo que é bom, representando uma forma de beleza racional, lógica e onipotente; noutra (2) Ele é propriamente aquele que não é propriamente, não podendo ser descrito, surge como algo sublime, irrepresentável e inominável, que só podemos alcançar pelos auspícios de uma teologia negativa, quando “falamos celebrando nossa ignorância e o nomeamos, no máximo, como vórtice, como abismo, deserto, solidão, silêncio, ausência” (ECO, 1988: p.114). De um lado, temos a concepção de uma divindade racional e de outro a celebração da obscuridade, do irracionalismo. Se a racionalidade se vincula a limitação lógica; o irracionalismo não se limita em sua sede de infinito, desvelando revelações inusitadas que só fazem sentido para iniciados. Eco é, nestes termos, um combatente do Deus racional contra a irracionalidade, contra a irrealidade cotidiana; nesta cruzada maniqueísta defende os limites e a virtude racional.

A necessidade de algo “não humano” ou “sobrehumano” não parece se encaixar na imagem do teórico famoso justamente por, no início da década de 60, destacar a abertura interpretativa como característica da obra de arte contemporânea. Porém, já naquela época o filósofo italiano concebia tal abertura como estando relacionada com uma epifania da estrutura epistemológica contemporânea, correspondente a teoria da relatividade e a quântica: podemos dizer que em cada época a estética revelaria a estrutura epistemológica correspondente ao “Espírito do Tempo”.

Ainda que, como teórico da comunicação, Eco tenha desenvolvido a distinção entre apocalípticos (que rejeitam as inovações tecnológicas e a cultura de massa em sua totalidade) e integrados (que a aceitam de forma indulgente); postulando para si um lugar de prudente meio-termo, não manteve essa posição por muito tempo. Logo o filósofo italiano percebeu que na dialética entre abertura interpretativa e limitação estrutural, o desejo do leitor tomou o lugar da prudência, assim como, a indústria cultural perdeu sua promessa de desenvolvimento crítico. No final da década de 60, Eco passou a pesar o pendulo em sentido inverso, enfatizando agora os limites interpretativos e avaliando a cultura popular de um modo, que na maioria dos casos, lhe faz merecer o rótulo de apocalíptico. A cruzada que Eco passou a desenvolver na defesa de limites para interpretações tornou-se sua obsessão teórica (é certo dizer que o sonho de Eco seria construir uma espécie de “Crítica da Interpretação Pura”, que desse limitação, em sentido kantiano, para a deriva da interpretação ilimitada).

O filósofo italiano coaduna essa crise dos excessos interpretativos com a afirmação de Chesterton, de que “Quando os homens já não acreditam em Deus, não é que não acreditem em nada: acreditam em tudo”. O resultado é o temor da invasão dos bárbaros e da ameaça relativista. A divisão entre apocalípticos e integrados ganha um sentido religioso no pensamento de Eco a partir da década de 70, reagindo aos clamores de “imaginação no poder” o filósofo italiano reafirma os limites necessários para a racionalidade. A ameaça relativista traduziu-se em posturas irracionais que desdenham da necessidade de justificação dentro do jogo de pedir e dar razões. Diante daqueles que falam em crise da razão a partir de posições não argumentativas, Eco reage com uma concepção falibilista, que procura preservar a racionalidade em sua tradição europeia greco-romana, tomando como medida lógica o modus ponens (o regra de inferência lógica de que, ao afirmar que “p é q”, depois reconhecendo que “r é p”, devo como consequência aceitar que “r é q”) e como medida ética o dizer de Horácio, “est modus in rebus, sunt certi denique fines quos ultra citraque nequit consistere rectum” (“há uma medida nas coisas, há enfim, certos limites aquém ou além dos quais o bem agir não pode subsistir”) (ECO, 1993, p.31). Ainda que as paixões se sobreponham a lógica no cotidiano, as tentativas de provar de modo argumentativo que não existe necessidade de argumentar logicamente, já que as Paixões sempre dominam, provocam em Eco um desejo irrefutável: “o Desejo de dar-lhe na cabeça” (ECO, 1984, p.155).

O irracionalismo interpretativo se diz de muitos modos promovendo uma nova Idade Média de místicos leigos (ECO, 1984, p.115), que se afastam da vida prática, da luta pela transformação social efetiva, procurando desvendar algum segredo fundamental. Em termos políticos essa postura paranoica se traduziu no cotidiano italiano em atentados terroristas promovidos por grupos de esquerda, teorias sobre conspirações promovidas pelos serviços secretos internacionais; a multiplicação das formas de fascismo. Em ternos culturais, a geração pós-68 passou a procurar desvendar o segredo que funcionaria e daria poder ao Grande Outro da sociedade capitalista, neste sentido, Roland Barthes chegou a acusar a gramática de ser fascista.Mas o exército hermético era muito amplo, contando em seu campo diversos autores que celebravam os excessos interpretativos como método, dentre eles Michel Foucault, Gilles Deleuze, a desconstrução de Jacques Derrida, a gnose de Harold Bloom, o neopragmatismo de Richard Rorty etc.

As interpretações excessivas, que tentam moldar o mundo de acordo com nossa vontade, são para o pensador italiano, sintomas da volta do pensamento religioso, em verdade, uma religiosidade mística que seduz “ex-ateus, revolucionários desiludidos que se atiram à leitura dos clássicos da tradição, os astrólogos, os místicos, os macrobióticos, os poetas visionários, o neo fantástico (não mais ficção científica sociológica, mas novos ciclos de Arte) e, finalmente, não mais textos de Marx ou Lenin, mas obras obscuras de grandes inatuais, possivelmente centro-europeus desiludidos, decididamente suicidas, que nunca publicaram nada em sua vida ou que só redigiram um único manuscrito, e esse também incompleto, incompreendidos durante muito tempo porque redigiam em língua minoritária, ocupados num embate corpo-a-corpo com o mistério da morte e do mal e que tinham grande raiva do fazer humano e do mundo moderno em geral” (ECO, 1988: p.111).

Se Eco se afasta da religião católica, não faz o mesmo no que se refere aos pressupostos epistemológicos de univocidade e universalidade do monoteísmo. Nele temos a transformação alquímica que seculariza a pergunta “Você acredita em Deus, ou é um daqueles ateus perigosos?”, na questão “você acredita na Verdade/ no Realismo ou é um daqueles relativistas pós-modernos inconsequentes?”. Novas cruzadas, novos bárbaros. De todo modo, o maniqueísmo é, por si só, uma redução caricatural da complexidade; uma postura que impede o diálogo, pressupondo a posse antecipada das condições de Verdade e racionalidade.

Referências

 

ECO, Umberto. O pêndulo de Foucault. Trad. Ivan Barroso. 2ª ed. Rio de Janeiro Record, 1989.

____. Cinco escritos morais. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 1998.

____. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

____. Apocalípticos e Integrados. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.

____. Viagem na Irrealidade cotidiana. 7 ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

_____. “Quando o outro entra em cena, nasce a ética”.  In: ECO, Umberto e MARTINI, Carlo Maria; Em que crêem os que não crêem? Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Rceord, 1999.

 

FARRONATO, Cristina. “From the Rose to the Flame: Eco’s theory and fiction between the Middle ages and postmodernity”. In: BONDANELLA, Peter (ed.). New essays on Umberto Eco. Cambridge: CUP, 2009. p.50-70.

LOPES, Marcos Carvalho. “Umberto Eco: da Obra Aberta para Os Limites da Interpretação”. In: SILVA, Fábio Luiz Carneiro Mourilhe e GRANIÇO, Frederico (org.). Redescrições. Rio de Janeiro: Luminária Acadêmica, 2010.

_____. Sobre Limites da Interpretação: um debate entre Umberto Eco e Richard Rorty. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, 2007.

 

Marcos Carvalho Lopes

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