
Talvez a vida seja um sonho. Talvez a realidade seja mostrada de modo diferente do que ela parece ser. Talvez a linguagem humana seja inadequada para representar a realidade. Talvez nossas mentes simplesmente não possam apreender o que acontece. Talvez nós sejamos cérebros em cubas, alimentados eletricamente por impulsos que alteram nossos estados cerebrais, portanto, criando pseudo-experiências de um mundo imaginário.
Essa linha de “talvez” céticos é a nossa herança deixada por Descartes, uma influência sem grandes méritos, dos filósofos do século XVII, que sugeriram que o que ocorre em nossas mentes poderia não ter nada a ver com o que ocorre fora delas. Uma razão para explicar o porquê do sucesso popular de um filme como “Matrix” é que as pessoas encontram nele um estímulo para trabalhar através de alguns dos paradoxos que ele sugere. Isso, também, é a razão pela qual muitos estudantes têm prazer em cursos de filosofia em que são requisitados a ponderar uma das tais fantásticas possibilidades do “espectro invertido” – a hipótese de que, graças às diferenças neurológicas ligadas ao sexo, quando os homens olham para o céu claro, eles veem a cor que as mulheres veem quando elas olham para um carro do corpo de bombeiros, e inversamente. O espectro da cor vista pelos homens é uma inversão do espectro visto pelas mulheres. Mas uma vez que os homens e as mulheres aplicam as palavras “azul”, “vermelho” e assim por diante para os mesmos objetos, eles nunca saberão que vivem em mundos de cores diferentes. A filosofia do século XX, finalmente, começou a se recuperar de sua obsessão por essa caricatura cartesiana da condição humana. Atualmente, muitos filósofos se divertem com a sugestão de que a mente é um lugar privado em que um olho interior assiste cenas inéditas no palco de um teatro interno, cenas que poderiam não ter nada a ver com o que ocorre lá fora, no mundo real. Os dois filósofos que nos persuadiram a não levar a sério tal sugestão foram o brilhante e excêntrico vienense Ludwig Wittgenstein e Donald Davidson, um professor de filosofia de Berkeley e de outros lugares, que morreu em 30 de agosto último, ao 86 anos.
Wittgenstein escreveu aforismos que foram sugestivos, mas difíceis de interpretar. Ao argumentar que não havia nenhuma questão para se comentar a respeito de “qualidade intrínseca” de uma sensação, ele disse, por exemplo, que “uma roda de bicicleta que pode ser girada embora nada mais gire com ela, não é parte do mecanismo da bicicleta”. Davidson, um dos filósofos mais respeitáveis e influentes do seu tempo, escreveu argumentos intrincados para uma audiência de especialistas. Mas tais artigos tornaram possível ver o que Wittgenstein tinha obtido. Pois Davidson deu uma articulação sistemática e cuidadosa à abordagem não cartesiana das relações entre mente, linguagem e mundo – uma abordagem que Wittgenstein havia só esboçado.
Ambos nos pediram para parar de tomar a linguagem como uma tentativa de comunicar o conteúdo de experiências não-linguísticas. Deveríamos, eles argumentaram, parar de ver nossas mentes como teatros internos. Em vez disso, deveríamos pensar que a posse de uma mente – a característica que distingue humanos de seres brutos – é como deter a capacidade de usar a linguagem no sentido de coordenar nossas ações em relação às de outras pessoas. Não precisamos nos preocupar com a adequação da nossa linguagem em descrever a realidade, pois as linguagens humanas são como são, contém as palavras que contém, porque têm sido afinadas por meio da interação com o universo não-humano.
Um modo de resumir essa linha de pensamento anticartesiana é dizer que as palavras adquirem seus significados por meio do seu uso, de um modo aproximadamente similar na maioria dos falantes, não por estar emparelhada como experiências particulares ou objetos.
Em um artigo de 1983 com o título de “A Coherence Theory of Truth and Knowledge”, Davidson atemorizou o mundo filosófico mostrando que seu modo wittgensteiniano de pensamento implicava na idéia de que a maioria de nossas crenças sobre qualquer coisa deve ser verdadeira. Sua questão era a de que cada um de nós tem de ter muitas crenças verdadeiras sobre as coisas antes de podermos tem qualquer crença falsa.
Por exemplo, considere os castores. Se você acredita que castores vivem em desertos, são de cor puramente branca e que pesam mais de cem quilos quando adultos, então você não tem qualquer crença a respeito de castores, falsas ou verdadeiras. Pois você está usando a palavra “castor” de um modo que não há nenhuma conexão com o uso ordinário da palavra. O que o resto de nós queremos dizer com a palavra “castor” é uma função de nossas crenças comumente mantidas sobre castores. Se as crenças que você expressa, por meio das sentenças onde há o uso da palavra “castor”, são tão diferentes das nossas, então não estamos falando das mesmas coisas.
Mesmo quando aceitam isso, os filósofos que permanecem leais a Descartes voltarão a perguntar: O que ocorre se não existe castor algum? Talvez castores sejam ilusões. Você não pode ter crenças verdadeiras sobre ilusões, pode? Se você não sabe o que é a verdadeira realidade e o que, meramente, apenas parece ser real (e como você poderia, uma vez que você pode ser um cérebro numa cuba ou um personagem em “The Matrix”), então você não está em uma posição de dizer que tem qualquer crença verdadeira.
Davidson replicaria que os céticos cartesianos fazem um uso ruim da expressão “verdadeira realidade”. Faz sentido dizer que pessoas que eu encontrei em meus sonhos, ou coisas que vejo após tomar alucinógenos, não são realmente reais. Pois negar a realidade, então, é apenas um modo de dizer que não podemos tornar as crenças sobre essas pessoas (ou coisas) coerentes com o resto de nossas crenças – especificamente, com nossas crenças sobre outras pessoas e coisas. A expressão “nenhuma realidade real”, em tais contextos, tem seu significado dado pelo contraste com casos em que estamos preparados para dizer que aquelas outras pessoas ou coisas são realmente reais.
A questão de Davidson é que o ceticismo faz sentido no varejo, mas não no atacado. Não temos de conhecer, antes, um grande tratado sobre o que é real, para então poder chamar algo de ilusão, justamente como não temos de ter uma grande quantidade de crenças verdadeiras, bem antes de podermos ter algumas falsas. A réplica apropriada à sugestão de que castores poderiam ser ilusórios é esta: ilusório em comparação com o que?
Mesmo um filme que dá nó na cabeça, como “The Matrix”, suporta um tal insight. Se você vê o filme após ter lido Davidson, você atentará para o fato de que o herói tem a maioria das mesmas crenças, após ele ser arrancado de seu mundo artificial, que ele tinha antes de entrar em tal mundo. Ele ainda acredita nos mesmos milhões de lugares comuns – os lugares comuns que torna possível, para ele, usar da mesma linguagem, fora da Matrix, que ele usava lá dentro.
Ele havia sido enganado sobre o que ocorreu ao seu redor, mas nunca foi enganado sobre que tipo de coisas o mundo contém, sobre o que é bom e o que é mal, a cor do céu, o calor do Sol, ou as feições mais importantes dos castores.
Em seu famoso artigo de 1974, “On the Very Idea of a Conceptual Scheme”, Davidson explicou a razão pela qual não tínhamos de nos preocupar a respeito da familiar sugestão da ficção científica: que uma civilização avançada, em uma galáxia distante, pudesse deter conceitos que estivessem eternamente além de serem compreendidos, conceitos inteiramente incomensuráveis em relação aos nossos. A razão é que toda linguagem, mesmo a mais avançada, tem de começar com um conjunto de respostas comportamentais a estímulos, respostas que podem ser correlacionadas às nossas próprias respostas. Assim, não há uma tal coisa como uma linguagem inapreensível.
Isso significa que se os sons que os galáticos estão fazendo são, afinal, uma linguagem, e que podemos aprender tal linguagem do mesmo modo que aprendemos a nossa, e do mesmo modo que um antropólogo aprende a linguagem de uma tribo ainda não estudada. Começamos com palavras como “azul” e “castor” – palavras cujo enunciado pode ser provocado pelo céu claro ou por uma pequena criatura marrom que constrói represas nos rios – e gradualmente vamos desenvolvendo nosso modo de expressar coisas tais como “blasfêmia”. “não-democrático”, “pósitron” e “número cardinal transfinito”.
A concepção de Descartes da mente como um espaço interno, e o modo dele lidar com os conceitos como entidades mentais que de algum modo precedem a linguagem, e não como usos de palavras, tem colaborado muito com a ficção científica. Mas não tem ajudado em nada o pensamento mais sério. Wittgenstein e Davidson achavam que havia chegado o momento dos filósofos não mais gastar o tempo com o espectro invertido e com galáticos incomensuráveis. Em seus usos de expressões tais como “realmente real” e suas tentativas de tornar o ceticismo de atacado, e não de varejo, plausível, Wittgenstein disse: os filósofos têm assumido a linguagem “em feriados”. Não deveríamos deixar nossos entretenimentos de feriados distraírem-nos no trabalho sério.
Os escritos de Davidson e Wittgenstein não são fáceis de entender para um não-especialista. Como os de Kant e Hegel também não são. Mas o trabalho original e imaginativo de filósofos como esses, ao longo de gerações, gradualmente influencia uma cultura inteira. Suas críticas de nossa herança cultural mudam nossa percepção do que é importante para se pensar sobre determinados assuntos. Daqui a uns dois séculos, os historiadores da filosofia escreverão sobre as mudanças que ocorreram na autoimagem dos humanos, ajudadas pelos escritos de Donald Davidson.
Richard Rorty é filósofo mundialmente conhecido e está aposentado da Cadeira de Literatura Comparada da Universidade de Stanford
