Autores, públicos, editores e financiamentos nas literaturas africanas
Luís Kandjimbo*
Há quatro anos uma professora de Carlton University, Sarah Brouillette, publicou um livro com o qual revela a sua perspectiva histórica sobre a formação e a função do público das literaturas africanas. O título é sintomático «Underdevelopment and African Literature. Emerging Forms of Reading» (Subdesenvolvimento e Literatura Africana. Formas Emergentes de Leitura). Toma de empréstimo o título do célebre livro do historiador pan-africanista guianês, Walter Rodney (1942-1980), «How Europe Underdeveloped Africa» (Como a Europa Subdesenvolveu África). Apesar das referências que Sarah Brouillette faz à leitura, ela não opera com o conceito de comunidades interpretativas aplicável aos contextos africanos. Por isso, avalia o «subdesenvolvimento» da edição comercial das literaturas partindo dos critérios que definem o mercado e o público europeu. Donde, as revistas literárias de pequeno formato, tais como a «Black Orpheus» e «Transition» ou as revistas angolanas «Mensagem» e «Cultura» parecem ter uma relevância idêntica a que têm nas comunidades interpretativas europeias e norte-americanas. Ora, se for levada a sério, a história das revistas literárias não-comerciais africanas abre outros caminhos para um conhecimento global da formação e função do público das literaturas africanas.
Cautela historiográfica
A definição do que se pode hoje entender por «pequena revista literária» não tem o seu modelo exclusivo nas literaturas europeias ou norte-americanas. Semelhante proposição funda-se no conceito de uma modernidade alternativa para a qual contribuem as convenções, instituições e práticas construídas pelos Africanos, no contexto histórico multilingue continental. Deste modo, as línguas europeias em que se efectiva o discurso da modernidade alternativa não são apenas o francês e o inglês. A língua portuguesa e o espanhol são outras a ter em conta.
Neste domínio, Eric Bulson, professor de Inglês na Claremont University revelou-se cauteloso no seu livro sobre a problemática, «Little Magazine, World Form», (Pequena Revista Literária. Forma Mundial), publicado em 2017.
Para Eric Bulson, importa ter em atenção os contextos em que surgem as «pequenas revistas literárias». Se na Europa, Inglaterra e Estados Unidos elas desenvolvem-se à luz das dinâmicas de «uma cultura literária cada vez mais comercial», já em África, constituem expressões de respostas ao colonialismo e, consequentemente, do processo de descolonização. Considera que as «pequenas revistas literárias africanas», ou «revistas pós-coloniais», por exemplo, «Black Orpheus», na Nigéria, «Transition», no Uganda e «Okyeame», no Ghana, não estão ao serviço de projectos cosmopolitas do modernismo ou internacionalismo desnacionalizados. Ao invés, escreve Bulson, contribuíram para gerar campos literários nacionais e regionais. Na verdade, surgem sob influência de especiais experiências políticas, económicas e sociais, além de histórias literárias, instituições e indústrias gráficas. Por essa razão, defende que «qualquer análise comparativa entre as «revistas pós-coloniais e modernistas» europeias e norte-americanas, requerem alargamento da geografia e expansão da linha do tempo. Em síntese, conclui que isso requer o «ajustamento de uma narrativa sobre a ascensão e queda de pequenas revistas». Nada têm que ver com a produção ou recepção do modernismo europeu ocidental. Estamos em presença de uma interpretação sensata de um crítico norte-americano que não se sente dominado por vontade e posse de monopólios eurocêntricos.
Definição «pequena revista literária»
Com efeito, a historiografia literária africana, presentemente, vem reservando um lugar importante ao conceito de «pequena revista literária», «little magazine», em inglês. Circulam várias definições sobre «pequenas revistas literárias». Trazemos aqui duas definições, a de Suzanne Churchill e de Louise Kane.
Suzanne Churchill define a pequena revista como «empreendimento não-comercial fundado por indivíduos ou pequenos grupos com a intenção de publicar trabalhos experimentais ou opiniões radicais de escritores não consagrados, impopulares ou sub-representados.» Por sua vez, Louise Kane concebe a pequena revista como «um tipo de publicação de pequena escala cuja preocupação em apresentar bons materiais a coloca em oposição às editoras comerciais que não publicam um escritor, enquanto não gozar a consagração legitimada pelo mercado.» Portanto, o público originário das «pequenas revistas literárias» é o público-alvo que constitui o núcleo das verdadeiras comunidades interpretativas com os quais os autores partilham as convenções e a institucionalidade da literatura que suportam a obra literária.
Revistas literárias não-comerciais
O inventário é relativamente extenso e o interesse pelo seu estudo é crescente. Assim, temos em Angola, «Cultura I», (1945-51); «Mensagem» (1951-52); «Cultura II» (1957-61); «Convivium», (Benguela, 1970-71); Vector (Nova Lisboa/Huambo, 1971-72). Em Moçambique: «Itinerário», (1941-55); «Msaho», (1952); «Capricórnio», (1958); «Paralelo», (1957-61); «Caliban», (1971-72). Em Cabo Verde, «Claridade»; «Certeza», (1944-45); «Suplemento», (1958); «Boletim dos Alunos de Liceu Gil Eanes», (1959); «Seló», (1962). Um dos sinais desse interesse pelo fenómeno dos PALOP ocorreu em 1999, foi publicado um artigo «The Development of Lusophone Africa’s Literary Magazines», (O Desenvolvimento das Revistas Literárias dos Países Africanos de Língua Portuguesa), assinado por George Alao, na revista «Research in African Literatures» da «African Literatures Association».
Público-alvo ou público repressivo?
Trazemos mais uma vez à conversa os conceitos de Jorge Gracia (1942-2021) com que já aqui operámos. Refiro-me às categorias respeitantes ao carácter do público: I) Público subversivo; II) Público repressivo. De acordo com os critérios de distinção propostos pelo filósofo cubano-americano, Jorge Gracia, ancorado à vontade e intenção de compreender o texto, bem como à interpretação do seu sentido, esse público não seria nunca nem subversivo, nem público repressivo. É que do seu comportamento como comunidade interpretativa não resulta qualquer tipo de cisão entre o texto e a sua dimensão semântico-pragmática. Além disso, não se faz o uso dos dispositivos institucionais do controlo da interpretação para impor o gosto, a subjectividade colectiva das editoras, instituições financiadoras e o interesse do aparelho institucional académico dos estudos literários africanos na Europa e nos Estados Unidos da América. Por essa razão, os autores que publicavam nas «pequenas revistas literárias», não eram vítimas das injunções dos públicos repressivos que as editoras comerciais e as instituições financiadoras passariam a representar. É o que vai acontecer no mercado das literaturas africanas suportado pelas indústrias editoriais que, no entender de Sarah Brouillette, serão responsáveis pelo seu «subdesenvolvimento». Tomando como exemplo a edição de livros nos países africanos de língua inglesa, Sarah Brouillette associa esse «subdesenvolvimento» às baixas taxas de alfabetização e às elevadas taxas de pobreza. Entretanto, numa outra perspectiva, há um facto decisivo que é negligenciado. Trata-se da dependência externa no processo de determinação do valor estético das obras literárias. Isto quer dizer que a crise se instala a partir do momento em que a identidade do público-alvo originário das «pequenas revistas literárias» deixa de ser relevante. Por força das exigências comerciais, os autores passam a obedecer à ditadura do gosto ocidental. Quando tal não acontece, o controlo institucional da interpretação que se exerce nos meios académicos encarrega-se de criar um público subversivo vicário com elevado poder de compra para satisfazer as suas curiosidades exóticas sobre o continente africano.
Financiamento e público vicário
Como vimos, a história das revistas literárias em África no século XX representa um determinado tipo de respostas das comunidades interpretativas nacionalistas contra o imperialismo cultural e, posteriormente, um elemento importante do processo de descolonização, após a II Segunda Guerra Mundial. Seguiu-se a Guerra Fria e correspondentes acções geopolíticas à escala global.
Foi no quadro das lutas pela hegemonia e influência em África que os Estados Unidos da América, durante a década de 60 do século XX, recorriam a alguns dos seus mais poderosos dispositivos para controlar as comunidades interpretativas africanas e, especialmente, as elites intelectuais e literárias. É o caso do financiamento concedido à revista «Transition» por duas instituições financiadoras norte-americanas, o Congresso para Liberdade Cultural e a Fundação Farfield que tinham como fonte oculta a CIA. Quando, em 1967, foi revelada a origem do financiamento da revista «Transition», a denúncia tinha iniciado através de artigos que, desde 1966, vinham sendo publicados pelo jornal norte-americano, «New York Times», com referências à revista «Encounter» a que estava ligado o crítico literário inglês, Frank Kermode (1919-2010).
O ugandês Rajat Neogy (1938-1995) e o sul-africano Ezekiel Mphahlele (1919-2008) acabaram por cair nas malhas da comoção pública africana. Nessa altura, Mphahlele era funcionário do Congresso para Liberdade Cultural cuja delegação se encontrava situada na cidade de Nairobi.
Portanto, na origem da extinção da revista «Transition» estão dois factos. Em primeiro, lugar, a denúncia do financiamento. Em segundo lugar, a prisão do seu editor e fundador, Rajat Neogy, em 1968. A partir daí alterou-se a denominação da revista e como editor sucederam-lhe Wole Soyinka e mais tarde Abiola Irele.
Papel de Mphahlele
O ensaísta sul-africano, Mphahlele, manteve vínculos profissionais com o Congresso para Liberdade Cultural, tendo assumido a direcção dos Serviços Africanos do a partir de 1961. Foi responsável pela sua expansão na África Austral e na África Oriental. Organizou a Conferência de Escritores Africanos de Língua Inglesa que teve lugar em Junho de 1962, no Centro Universitário de Makerere, em Kampala, Uganda. Estiveram presentes quarenta e cinco delegados. No mesmo ano, fundou o Centro Cultural Chemchemi, em Nairobi. Tomava-se o mesmo modelo de Club Mbari de Ibadan, igualmente com os objectivos de incentivar o surgimento de novos escritores no Quénia.
Ofensas à integridade moral
Para o que interessa na presente conversa, a relevância do caso do financiamento à revista «Transition» reside no modo e nos processos em que se analisam os mecanismos de controlo dos mercados literários e formação dos públicos subversivos e repressivos. Um dos responsáveis por essa acção mecenática americana confessou, quatro décadas depois, afirmando que o interesse particular pelos intelectuais e escritores literários estava em linha com o cumprimento daquilo a que designou por «imperialismo americano», já que o objectivo consistia em controlar os mercados literários da Inglaterra. De resto, o Congresso para Liberdade Cultural e as suas organizações de apoio funcionavam como um público repressivo, através de um sistema de revistas culturais e uma rede de intelectuais em vários continentes.
O estrondoso escândalo do financiamento suscitou várias reacções de Ezekiel Mphahlele. Por essa razão, tomou posição perante as ofensas à sua integridade moral que a comprovada ligação ao Congresso para Liberdade Cultural lhe tinha causado. Tais reacções foram publicadas nas páginas da revista «Transition». Afirmava o seguinte:
«Sim, a CIA cheira mal. … Fomos enganados. Mas em África, nada fizemos sabendo que o dinheiro tivesse vindo da CIA, nem fizemos nada que não teríamos feito se o dinheiro tivesse vindo de outro lado. (…) Por dever, naturalmente, mordemos os lábios de indignação, quando descobrimos que a CIA financiava os nossos projectos. Mas é desonesto pretender que o valor do que foi assim alcançado estivesse moralmente contaminado.» Por outro, em sua defesa Mphahlele considerava que a aceitação do cargo afirmou que ocupava sujeitava-se à condição de que África não fosse «transformada em outro teatro da Guerra Fria.»
Conclusão
Os modelos de financiamento das «pequenas revistas literárias» e das actividades dos escritores representam estratégias de uma diplomacia pública e cultural, no domínio da produção literária. O mérito disso reside no facto de se revelarem como acções de carácter diplomático, num contexto da década das descolonizações em que a Guerra Fria cultural tinha o seu palco em África. Mas com as necessárias adaptações, tais estratégias continuam a ser praticadas por todos outros países do chamado Norte Global, enquanto expressões do «soft power» ou do «smart power», de acordo com a categorização formulada por Joseph Nye Jr., um especialista norte-americano e professor de Relações Internacionais.
No livro, publicado em 2020, «African Literature and the CIA. Networks of Authorship and Publishing», (A Literatura Africana e a CIA. Redes de Autores e Editores), a especialista britânica da cultura do livro, Caroline Davis, trata exaustivamente do caso dos financiamentos em África e, com razão, sustenta que, no “campo restrito da produção cultural”, as intervenções da CIA, alteraram profundamente a publicação literária africana.
Caroline Davis sublinha, no contexto da Guerra Fria cultural, o facto de um grupo privilegiado de escritores africanos, predominantemente homens, ter sido cuidadosamente seleccionado para receber um tratamento diferenciado, gozando os benefícios de uma «visibilidade internacional através de conferências, festivais, produções teatrais, programas de rádio e transmissões de cinema e televisão financiados pela CIA», além das bolsas de viagens e salários. Os livros de tais escritores africanos mereciam republicações e traduções em todo o mundo. Deste modo, são identificados como «membros de um novo cânone de escritores africanos pós-coloniais». Em breve síntese, aí temos os efeitos da criação de públicos subversivos e repressivos a que também correspondem comunidades interpretativas. Impõem os seus gostos e os seus padrões estéticos aos públicos originários das «pequenas revistas literárias».
* Ph.D. em Estudos de Literatura;
M.Phil. em Filosofia Geral
