ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Giverage Amaral, Augusto Hunguana
Aristóteles fez uma tipologia dos sistemas políticos: teocracia, aristocracia, democracia. Com a metade da população mundial a ir votar em 2024, na teodiceia de Leibniz – o filósofo do melhor dos mundos possível – a democracia estaria hoje no pedestal das formas de governo, sem o risco (aparente) de incorrer a sarcasmos de Voltaire (Candide). Fukuyama celebraria o fim da história (vitória do liberalismo político), sem o perigo de ser desmentido por presuntas guerras de civilizações (P. Huntington); afinal de contas a guerra Rússia – Ucrânia é entre eslavos e a guerra da Palestina (Israel versus Hamas) é entre semitas, do outro lado da cortina da modernidade ocidental…
Todavia, por detrás do aparente triunfo global da democracia se esconda uma tramóia oligárquica, que cientistas políticos, sociólogos e filósofos não cessam de denunciar. No ocidente, o aparato burocrático administrativo (governos, parlamentos), sob a égide do potentado económico (Davos, Bancos, multinacionais, G7, G20…) governa o mundo e os países de uma maneira autocrata e autoritária (com a subida em flecha das extrema direitas) e reduz a participação popular a sufrágios (sempre menos concorridos), manipulados por Mídias cooptados pela causa do ultraliberalismo. No Sul do mundo a democracia é um simulacro que não precisa de máscaras. A populaça é chamada a votar mas, ao mesmo tempo, intimada a votar bem (a favor das oligarquias locais, moleques das oligarquias globais) senão, o seu voto é nulo.
Uma comparação – improvável – entre Moçambique e os Estados Unidos (toute proportion gardée) pode parecer insensata e contra a razão. Porém, nas suas abismais diferenças, eles apresentam analogias (semelhanças e diferenças) que podem servir de revelador químico, para demonstrar a democratura e o iliberalismo mundo.
A exaltação da Atenas do século V a.C., como exemplo e berço da democracia directa é um mito que omite que mulheres, escravos e metecos (estrangeiros) não faziam parte da polis política da cidade-estado .
Depois da segunda guerra mundial afirmou-se um novo modelo de democracia, propulsionado e suportado pelo poderio bélico industrial do país que o incarnava, os Estados Unidos, vencedores dos regimes nazi-fascistas ítalo-alemão-japones. O “American Dream” se apresentava como um composto de diferentes elementos, todos eles apresentados como desejáveis: os princípios constitucionais da igualdade entre todos os seres humanos, os direitos inalienáveis a vida, a liberdade, a Ius solis -diferentemente daquilo que acontecia (e continua a acontecer) na maioria dos países europeus, em que o ius sanguinis determina a atribuição da nacionalidade. O crescimento económico dava (supostamente) a todos, a oportunidade para alcançar o almejado sucesso e bem-estar, que em países europeus e, ainda menos nas suas colónias, era impossível só de imaginar.
Os Estados Unidos apresentavam-se com jovens e brilhantes astros políticos a dirigir o país -exemplo de JFK-, enquanto a Europa – dos vários De Gaulle, Churchill, De Gasperi, Adenauer, para não falar dos ditadores Francisco Franco e Salazar – exprimia uma política antiga, anti moderna e muito pouco inclusiva.
Para além dos seus pecados originais – a exterminação dos índios e a segregação de negros- hoje, o paradoxo axiológico dos EU, não é só o supremacismo ( branco no interior e americano no exterior) ou a discrepância social extrema entre os seus cidadãos, mas as suas cruzadas sanguinárias, a exaltação – urbi et orbi – da Ius ad bellum, o terrorismo de Estado, a brutalidade e selvageria como modo de relação com (contra) as outras nações. Os valores constitucionais – americanos (de liberdade, justiça, igualdade) escritos por Thomas Jefferson e proclamados por 13 colônias inglesas da América do Norte em 1776 – e dos quais a democracia americana se continua a reclamar- parecem se ter evaporados no nente .
Quando Roma era o Caput Mundi, o édito de Caracalla, 212 d.c. estabeleceu o direito a cidadania a todos os súbditos do império; Quando o império britânico (contra o qual os americanos se levantaram) não conhecia o pôr do sol, depois de muitas barbaridades, impôs ao mundo o fim da escravatura – que os americanos teimaram em manter. A paz americana é o reino do terror. Terror econômico, com imposições insensatas impostas com gatilho de sanções, mercenários econômicos (para destruir a sobrevivência dos pobres) e do uso e abuso do poderio militar, que vai de assassinatos políticos, passando por golpes de estados até a invasões militares. A denúncia contra esta contradição aberta e violenta, entre a proclamação dos direitos e a prática histórica dos EU, fora já denunciado pelo filósofo Henry Davi Thoreau no século XIX.
A Utopia por detrás da fundação da Frelimo e da proclamação da República Popular de Moçambique, era a construção de uma sociedade igualitária, solidária, sem explorados nem exploradores; um mundo sem descriminações raciais, religiosas, étnicas ou regionais (…). Os mesmos ideias de justiça – embora conjugados mediante diferentes modelos sociais e políticos – animavam Moçambique e os Estados Unidos. Quando nos anos noventa a Realpolitik nos obrigou a aderir voluntariamente as instituições de Bretton-Woods e, portanto, ao liberalismo, a miragem era de que os ideais de democracia e justiça social pudessem se fundir num unicum, que se pareceria com o melhor dos mundos possível de Leibniz; Mundos com os olhos voltados para frente, confiantes de que a utopia democrática e o bem-estar colectivo pudessem triunfar, já que o teatro geopolítico já não sofria a divisão e luta de blocos contrapostos.
Entretanto, volvidos pouco mais de trinta anos, o fim da história revela-se ilusória. A utopia se evaporou e uma cruel realidade se vai afirmando: os Estados Unidos já não representam nenhum modelo a ser emulado. Em Moçambique, país hoje recolonizado por diferentes poderes hegemónicos – FMI, BM– a quem tem que prestar contas (e vassalagem) e palco de disputas entre velhas e novas potências devido aos recursos naturais e da sua posição estratégica; já não se vislumbra nenhuma ideia ou projecto para que as populações locais possam melhorar as suas condições de vida e existência.
As políticas de inclusão deixaram lugar a formas de exclusão cada vez mais marcantes. Nos Estados Unidos elas se traduzem em novas discriminações contra a população negra, hispânica e dos novos emigrantes, em Moçambique pelo aparecimento de uma oligarquia político-económica voraz, egoísta e predadora, o que favorece ( e cauciona) a emergência de novos conflitos, como o de Cabo Delgado. A(s) classe(s) dirigente(s) nos dois países esta(m) cada vez mais velha(s), sem ideias e com o objetivo único de se manter, foucaultianamente, no poder, pelo poder. Se nos Estados Unidos o dilema do eleitor americano nas próximas eleições Novembro será escolher entre os vovós Biden, o belicista e Trump, o separatista (quase 160 anos em dois). Em Moçambique também o princípio da gerontocracia política – num país entre os mais jovens do mundo, vai-se repetir nas próximas presidenciais de outubro, com um provável desafio entre Ossufo Momade (ou outro Ossufo qualquer) da Renamo e alguém da “velha guarda” -etnicamente escolhido – da Frelimo.
Na conjetura internacional do triunfo aparente da democracia, as semelhanças entre estes dois países que, em princípio, não têm nada em comum: de um lado, o país mais rico e poderoso (EUA) e, do outro, o mais fraco e pobre (Moçambique), demonstra que é o mundo todo (com excepção de um Lula que confirma a regra) que está sem sonhos, nem utopias. O olhar dos americanos, dos moçambicanos e, com eles do mundo, está virado para o passado (Make América great again e o retorno ao partido único) e as classes políticas se demonstram incapazes de indicar caminhos aos respectivos povos.
Hoje, no mundo inteiro, falsifica-se a democracia e legitima-se todo e qualquer meio ilícito para ganhar as eleições e se manter no poder. Nos Estados Unidos a forte tradição democrática está em regressão, ninguém sabe, até hoje, se as eleições de 2000 que levaram George W. Bush Jr. à Casa Branca pela primeira vez (e em parte também as segundas de 2004, contra John Kerry) foram regulares ou manipuladas, para não falar do assalto dos prosélitos de Trump ao Capitol. Em Moçambique as eleições de 2019 e sobretudo as últimas autárquicas de 2023 foram as piores de sempre, em termos de transparência e respeito da vontade popular, da história do país.
Os EU tem em comum com Moçambique e o mundo, algo ainda maior: a falta de ideais, de sonhos grandes, humanos, num mundo onde os valores (axiologia) e utopias (verdades de amanhã) são substituídas por interesses. Hoje somos incapazes de ter sonhos colectivos – um meta mundo – até para salvar o mundo das mudanças climáticas ; vivemos num regime de ineptocracia, governados por lobbies internacionais anônimos e administrados por anás políticos .
O sonho da liberdade e democracia evaporaram-se. A justiça não era levar as pessoas a caucionarem, com o seu voto, políticas de usurpação e segregação. O sonho filosófico de democracia ( República de Platão, Política de Aristóteles, Contracto Social Rosseau, Russel…) era de uma sociedade onde todos seriam co-responsáveis da vida de todos, onde a eudaimonia estaria na busca da justiça e da fraternidade humanas. É este sonho que hoje é negado pelas democraturas e iliberalismos impostos pelo império simithiano de interesses.
Então é melhor pensar que este não o leibniciano melhor dos mundos; pensar – contra Fukuyama -sem caucionar as pretensas guerras de civilizações- que a história não terminou, para continuar a dar uma chance de futuro, a humanidade.
Como outrora as revoluções América e francesa fizeram soprar uma nova era de direitos, talvez tenhamos que olhar com mais seriedade (empatia e solidariedade) as lutas – contra o democratismo institucionalizado – pela (re) instauração (político-económicas) das liberdades, em curso no Sahel…
Muito bom, pessoal bem atento
A luta continua