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A Angústia De Uma Nação

Se olharmos para Moçambique, vemos um país angustiado não apenas por suas dificuldades atuais, mas por sua longa história de dor. A escravidão, o colonialismo, as guerras e as desilusões da independência criaram um estado de angústia coletiva.

ensaio de Severino Ngoenha

A angústia é uma experiência humana fundamental. Antes mesmo da filosofia sistemática, os mitos e as narrativas religiosas já a abordavam, refletindo sobre o sofrimento, a incerteza e o absurdo da existência. Job, na tradição bíblica, é uma das figuras mais emblemáticas da angústia: um homem justo, cuja desgraça não se explica por uma falta moral ou erro pessoal. A sua dor é agravada pela certeza da própria inocência e pela incompreensão de um Deus que parece castigá-lo sem motivo. Job, por isso, faz aquilo que a angústia mais autêntica exige: interroga o sentido da sua dor e desafia até mesmo a justiça divina.

A filosofia moderna aprofundou esse problema, especialmente com Kierkegaard e Heidegger. Para Kierkegaard, a angústia não é apenas sofrimento, mas um estado existencial ligado à liberdade e à responsabilidade. Em O Conceito de Angústia, ele descreve a angústia como o sentimento do possível: o ser humano angustia-se porque se confronta com a sua própria liberdade, com a vertigem de todas as escolhas que pode fazer. Já para Heidegger, a angústia revela a verdade do ser-no-mundo: um estado onde todas as certezas desaparecem e onde nos damos conta da nossa própria finitude.

Carl Jung, por sua vez, encontrou na história de Job uma chave para compreender o sofrimento humano dentro de uma perspectiva psicológica e arquetípica. Job não apenas sofre; ele transforma a sua dor em um questionamento que desafia a ordem estabelecida, abrindo caminho para uma nova consciência sobre o divino e sobre si mesmo. A angústia, nesse sentido, não é apenas destrutiva, mas também criativa, pois leva à busca por um sentido mais profundo.

Se olharmos para Moçambique, vemos um país angustiado não apenas por suas dificuldades atuais, mas por sua longa história de dor. A escravidão, o colonialismo, as guerras e as desilusões da independência criaram um estado de angústia coletiva. O povo moçambicano, tal como Job, carrega cicatrizes de sofrimentos que muitas vezes não foram escolhidos nem merecidos. A luta pela liberdade não trouxe as respostas que se esperavam; as promessas de um futuro melhor nem sempre se cumpriram.

O que fazer com a dor que parece não ter explicação?  Como agir quando a consciência não se resigna a aceitar as explicações petrificadas sobre o caos que sucumbimos? A questão que se coloca é a mesma que Job enfrentou: o que fazer com essa angústia? Resignar-se? Revoltar-se? Ou transformar essa dor em um motor de reflexão e mudança? A angústia pode ser tanto destrutiva quanto criativa. Se levada ao extremo, pode resultar na paralisia, no niilismo e na desesperança. Mutatis mutandis, a angustia pode ser um ponto de viragem. Job, ao desafiar Deus, não apenas lamenta sua sorte, mas exige um novo entendimento do sofrimento e da justiça.

Historicamente, a angústia tem sido também um dos grandes motores da ação política e social.

Quando um povo se dá conta da sua condição e não aceita mais a normalidade imposta, essa inquietação pode levar à organização, à ação e à criação de novos paradigmas políticos. O desafio é transformar a angústia em consciência crítica e ação, evitando o risco de que ela se converta apenas em resignação ou violência destrutiva.

Moçambique, na sua trajetória, deve encontrar na sua angústia o impulso para um novo caminho, onde a consciência histórica e a responsabilidade coletiva levem a um futuro mais lúcido e justo.  Se Job interroga Deus na solidão da sua miséria, o moçambicano  angustiado talvez não deva tratar a angústia de forma abstrata ou individualizada, como ocorre na tradição existencialista ocidental. O sofrimento e a dor devem ser compreendidos dentro de um contexto comunitário (cum munia),  onde a harmonia é essencial. A nossa angústia resulta do rompimento dessa harmonia pela injustiça social. Mas a solução para essa angústia não pode ser introspectiva ou solitária, como em Kierkegaard ou Heidegger; ela passa pela restauração da ordem comunitária, através do diálogo e da reconciliação.

Em tempos de crise, não se busca apenas um sentido filosófico para a dor, mas sim uma reintegração social e comunitária. A angústia diante do absurdo, só pode ser resolvida no contexto de uma coletividade nacional que redescobre a absoluta primazia do nós, da comunidade, da nação sobre  todo e qualquer solipsismo.

Marcos Carvalho Lopes

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