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A areté de Andy Warhol

A areté de Andy Warhol em pdf

DANTO, Arthur. Andy Warhol. Trad. Martha Pino Moreno. Madrid: Paidos Estética, 2011. 171 páginas.

dantowNo começo da filosofia os gregos se perguntavam se a areté poderia ser ensinada. Geralmente traduzimos areté como virtude, no entanto, como defende o filósofo Alexander Nehamas, o termo deveria ser pensado como algo “intrinsecamente social e, por vezes, até mesmo equivalente a fama (kelos)”. A palavra “virtude” seria estreita para designar o sentido grego da areté, já que, o termo podia ser utilizado para caracterizar utensílios, instrumentos ou mesmo coisas inanimadas, como o algodão e a terra fértil (NEHAMAS, 2005: p.124). Para Nehamas a areté é “o conjunto de características que convertem alguém em um membro destacado do grupo ao qual pertence”, e também “a característica pela qual algo é considerado justificadamente notável”. Estas duas descrições se somariam em um único conceito que envolve três elementos: “a estrutura e a qualidade interna das coisas, sua reputação e o público que as apreciará” (NEHAMAS, 2005: p.125). Quando se trata dos seres humanos, Nehamas acredita que “êxito” seria uma boa tradução. Assim, os gregos se perguntariam se a capacidade de conseguir êxito poderia ser ensinada. Algo eminentemente pragmático. Neste sentido dado por Alexander Nehamas é que Arthur C. Danto em seu livro Andy Warhol investiga a areté que fez deste artista um ícone da cultura popular, capaz de promover uma redefinição do que seria a própria arte. Danto não faz uma biografia, mas “um estudo, de um ponto de vista filosófico, sobre aquilo que faz de Warhol um artista fascinante” (DANTO, 2011: p.15).

 

Quem leu obras de Arthur Danto sobre arte se deparou com o relato autobiográfico sobre como o autor ao visitar uma exposição de Andy Warhol na galeria Stable em abril de 1964 se converteu em filósofo da arte (Idem, p.15). Na exposição encontrou centenas de objetos idênticos a caixas de alimentos empilhados de tal forma que quem entrava na galeria poderia pensar ter confundido o local e estar em um depósito de algum supermercado. Dentre os objetos da exposição estavam as célebres Caixas de Brillo, que se tornaram o tema central das interrogações de Danto. Para ele as Caixas de Brillo são uma obra prima que incorporam um importante sentido filosófico: alteraram a pergunta sobre “o que é arte?” pela interrogação sobre “o que justifica que uma coisa seja reconhecida como arte e outra não se são as duas idênticas?” (p.45). Esta questão foi o mote para que Danto desenvolvesse sua teoria institucional da arte que tinha como objetivo criar uma definição que justificasse o reconhecimento daquelas obras de Warhol como artísticas. Danto faz isso atribuindo um status ontológico distinto aos objetos reconhecidos como incorporando significado (embodied meanings) pelo “mundo da arte” (artworld) (conjunto de representantes, escritores, colecionadores, críticos etc.). Ora, as Caixas de Brillo de Warhol teriam passado por um processo de transfiguração ganhando uma aura que as diferenciou ontologicamente das idênticas caixas de papelão que embalavam o sabão Brillo no supermercado.

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Danto desenvolve uma história da arte em que vê a modernidade marcada por uma posição reflexiva de questionamento do sentido geral (transhistórico) daquilo que definiria algo como artístico. Os movimentos de vanguarda com seus experimentos colocariam a própria essência da arte em questão, trajetória que teria seu ponto culminante com as Caixas de Brillo de Warhol. Ora, diferentemente dos ready-made de Marcel Duchamp que questionavam a ideia de “gosto” (com a necessidade de que uma obra de arte deveria causar algum tipo de prazer visual), e, por isso deveriam produzir uma indiferença visual (sendo objetos esteticamente medíocres); as caixas de brilho – diferentemente – foram “feitas” pelo artista, além de possuírem certa beleza que exige reconhecimento (DANTO, 2011: p.87). Por isso seriam o marco daquilo que Danto chamou de “o fim da arte” porque trariam uma autoconsciência pela qual transcende os limites de qualquer metanarrativa, a arte tornando-se ela mesma filosofia. Ao demonstrar que as obras de arte podem ser indiscerníveis de meros objetos cotidianos, qualquer coisa passa a poder ser arte, o que exaure aquilo que a arte poderia mostrar reflexivamente acerca da sua própria natureza, de tal modo que as obras de arte passam a ser dependentes das narrativas e questões que incorporam. Passamos para uma situação que Danto chama de pós-histórica.

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Andy Warhol é uma espécie de Sócrates para Arthur Danto. Sócrates incorporava uma “forma de vida” que foi tomado por seus discípulos como exemplar, o que os levaram a desenvolver discursos teóricos para tentar apreender o significado daquilo que representou o “êxito” de sua vida. Ora, o interessante é que a concepção teórica de Danto – derivada das teorias institucionais da arte – promove uma rígida divisão entre arte e vida (c.f. SHUSTERMAN, 2000) que – tacitamente – entra em xeque em Andy Warhol. A transformação que levou um artista comercial de sucesso a ser “o artista da segunda metade do século XX” é, descrita por Danto como uma espécie de “conversão”, uma transfiguração que o fez “um artista para aquelas pessoas que sabiam muito pouco de arte. Representava uma forma de vida ideal, conflitante com seu mundo por muitos lados. Encarnava um conceito vital que adotava os valores de uma era na qual, todavia, vivemos. De certo modo, criou uma imagem icônica do que significava a vida. Nenhum outro artista chegou perto desta conquista” (DANTO, 2011: p.26).  Mais do que isso, na descrição de Danto, o artista pop norte-americano deve ser visto como alguém de natureza filosófica: “Andy tinha, por natureza, uma mentalidade filosófica. Muitas de suas obras mais importantes são como respostas para perguntas filosóficas, ou soluções para enigmas filosóficos. Isto é algo que não entendem muitos dos observadores de sua obra, já que a filosofia não é ela mesma muito cultivada fora das universidades; ainda que, na realidade, grande parte do conhecimento filosófico necessário para apreciar as assombrosas contribuições de Warhol, não existia até que ele fez a arte em questão” (DANTO, 2011: p.155). Andy Warhol era “o artista esperado”(Idem: p.39).

A afirmação da necessidade de uma interpretação filosófica parece algo autoindulgente já que Danto também insiste em que Andy Warhol retratava coisas que qualquer pessoa poderia facilmente identificar, mostrando “quem somos”. Ora, é justamente uma diferença invisível e transcendental que justificaria o reconhecimento do trabalho de Warhol pelo mundo da arte. Esse movimento na descrição de Danto se dá numa linguagem que, não por acaso, se assemelha a retórica católica (c.f. SHUSTERMAN, 2012). No importante artigo “O Mundo da Arte” o filósofo norte americano explicava que “O mundo da arte se encontra diante do mundo real aproximadamente como a relação na qual a Cidade de Deus se encontra diante da Cidade Terrena. Alguns objetos, como alguns indivíduos, desfrutam de uma dupla cidadania, mas permanece, apesar da transfiguração, um contraste fundamental entre obras de arte e objetos reais” (DANTO, p.22). Essa retórica reaparece de forma forte no livro de Danto quando o autor afirma que o que Warhol desvelou foi uma forma de religião: “Toda religião se baseia no sofrimento e no alívio radical. Era como se a mensagem dos salvadores tivesse se transferido para o idioma universal dos anúncios norte-americanos de publicidade barata. A exposição de Bonwit Teler testemunha o que talvez continue sendo a transformação mais misteriosa da criatividade artística: o “antes e depois” de Warhol” (DANTO, 2011: p.166).

O “antes e depois” de Warhol, entre o artista comercial e o ícone da cultura do século XX, é descrito por Danto como um “giro religioso” que teria ocorrido entre os anos 1959 e 1961. A transformação no artista teria sido demasiadamente profunda “para não ser uma conversão religiosa” (DANTO, 2011: p.165). Para justificar essa posição messiânica que Arthur Danto atribui a Andy Warhol, o filósofo desenvolve uma narrativa que tenta demonstrar a coerência presente em todos os projetos do artista. Seu tema seria a “consciência comum de seu tempo, o mundo da vida cotidiana, […] o mundo em todos nos sentimos em casa” (DANTO, 2011, p.109). Ainda assim, distingue na obra de Warhol dois períodos que tem como marco divisório o atentado que o artista sofreu em 1968 que o levou a uma experiência de quase morte e o deixou permanentemente traumatizado: as obras que produzia antes modificaram filosoficamente a história da arte, afirmação que seria difícil de ser sustentada quando se trata do trabalho seguinte (Idem, p.141).

 

A parte mais interessante do livro esta na descrição da primeira fase de trabalho pop de Warhol, principalmente quando Danto minuciosamente descreve a produção da obra que é sua obcessão: as caixas de brillo. De modo geral, Danto divide a obra de Warhol em dois níveis: um de medo e agonia, marcado por acidentes, suicídio, execuções; e o nível da beleza radiante das celebridades Marilyn, Liz Taylor, Elvis, Jesus etc. Estes níveis por vezes se cruzam quando, por exemplo, depois do suicídio de Marilyn Monroe o artista fez com seu rosto uma obra que seria a representação gráfica de sua morte, numa série de imagens que vão se borrando sem que sorriso desapareça de seu rosto (diferente da uniformidade que manteve em suas imagens de Sopa Campbell) (DANTO, 2011: p.63-64).

Na descrição de Danto, “os períodos revolucionários começam por colocar a prova fronteiras artísticas e este processo se estende às fronteiras sociais fundamentais para a vida, até que, ao final, toda sociedade se transformou” (DANTO, 2011: p.51). A arte pop de Andy Warhol se vincularia ao questionamento dos movimentos de 1968, problematizando as fronteiras de identidade, gênero, currículo etc. O impacto no mundo das artes foi profundo e o horizonte das artes visuais deixou de se referir prioritariamente ao domínio de técnica, para se direcionar ao raciocínio, a capacidade de justificação de algo como arte (DANTO, 2011: p.129).

A descrição feita por Danto do período posterior ao atentado de 1968, nos anos que Warhol se dedicou prioritariamente ao cinema e a televisão, é indulgente, já que tem por objetivo afirmar a coerência sua coerência em relação a totalidade de sua obra. Danto não deixa de especular sobre o que Warhol poderia ter feito na TV se não tivesse morrido em 1987.

 

O êxito de Warhol em se fazer famoso, uma estrela entre as estrelas, continua envolvido numa aura de mistério. Sobre isso, algumas vezes Danto caí na tentação de pressupor uma teleologia fundada no a posteriori; faz isso quando diz que a decisão do artista de pintar latas de sopa Campbell tinha como objetivo conquistar atenção dos meios de comunicação (DANTO, 2011: p.55). Gary Comenas discorda de Danto, para ele a decisão de pintar as latas de sopa foi artística: Warhol não podia prever o sucesso e repercussão que sua obra conquistaria, mais do que isso, ao se tornar “pop” o artista norte-americano correu riscos financeiros (seus ganhos em 1965, depois das célebres sopas Campbell e caixas de Brillo, eram menores do que quando era um artista comercial) (COMENAS, 2012).

Para Comenas o livro de Danto se baseia em uma bibliografia ultrapassada; por isso algumas informações são problemáticas, outras são realmente falsas. A descrição da Factory e da relação de Warhol com as drogas é um desses pontos problemáticos. Para Danto depois do atentado de 1968 Warhol teria parado de tomar anfetaminas, o que o leva a especular sobre qual relação teriam as drogas com seu período de maior criatividade. Contudo, há depoimentos de que Warhol continuou fazendo uso de drogas até o fim de sua vida e que, efetivamente era mais “viciado” do que Danto supõe. Uma afirmação atribuída a Warhol que é muitas vezes repetida por Danto – “se quiseres saber quem é Andy Warhol, olhe meu rosto, olhe a superfície de minha obra. Lá está tudo” –  seria uma montagem  do jornalista Gretchen Berg em cima de respostas monossilábicas do artista. Danto atribui a primeira aparição do termo pop ao crítico Lawrence Alloway, no entanto, essa informação é falsa: o termo teria aparecido no artigo “But today we collect ads” de Peter e Alison Smithson publicado em 1956 (c.f a parte 2 de COMENAS, 2012). Estes “desvios” não são assunto somente para especialistas, mas algo que coloca em dúvida se Danto quer descrever o ícone imaginário – e ideal – que inspirou seu trabalho ou se aproximar das contradições e idiossincrasias de um ser humano complexo e, nem por isso, menos sedutor. O ápice desta idealização acontece no último capítulo do livro “A religião e o lugar comum”, quando Danto lembra que relíquias religiosas, como o “Santo Graal” seriam especialmente diferentes das coisas ordinárias, justamente por terem sido tocados por um alguém que é considerado um deus. Seguindo o raciocínio de Danto, podemos dizer que somente aqueles que possuem fé reconheceriam a profunda diferença ontológica desses objetos, assim como, aqueles crentes do mundo da arte compreendem a Verdade de Warhol. O tipo de aura que Danto coloca em Warhol e em suas caixas de brillo tem um dado religioso difícil de sustentar de modo argumentativo. O artista pop desvelaria em um mundo obscuro, “seres radiantes, cuja presença entre nós é redentora, e, em cuja companhia Warhol aspirava insinuar a sua própria presença sem brilho, e converter a todos em estrelas. Sua missão era exteriorizar a interioridade de nosso mundo compartilhado” (DANTO, 2011, p.163-164).

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A maior (e melhor) publicidade que o livro de Arthur Danto conquistou veio de uma situação que mostra a relevância de Andy Warhol em um universo dominado por imagens: Meghan McCain, filha do candidato derrotado à presidência dos EUA John McCain, postou uma foto em se twitter em que mostrava a capa do livro que estava lendo. A atenção da mídia se voltou para o decote da blogueira e a foto ganhou repercussão mundial. Pelo twitter Meghan McCain recebia mensagens ofensivas, acuada, acabou pedindo desculpas se acaso sua foto tivesse ofendido alguém. A repercussão fez seu número de seguidores saltar de 25 mil para 75 mil (hoje ela tem mais de 140 mil followers). Em meio a esta estranha comoção pública, o livro de Danto e a arte de Warhol acenavam: os 15 minutos de fama, a força e distorção da reprodução das imagens, o pop ou o kitsch, a sedução do universo das celebridades, a areté contemporanea etc.

A história dessa imagem de Meghan McCain demonstra a atualidade e pertinência da obra de Andy Warhol. Talvez o representacionismo de Danto não seja o caminho mais adequado para entender seu sentido quando vivemos num momento que a relação entre cópia e original ganhou novas dimensões. A leitura do livro de Danto é uma interessante aproximação de sua filosofia e da obra de Andy Warhol. Se não avalizamos todos os seus insights, eles ao menos servem para justificar porque os padres e pastores cantores são hoje – numa época marcada pela facilidade da troca digital de arquivos – os campeões de venda: é preciso alguma no “original” para distinguir indiscerníveis.

 

REFERÊNCIAS:

 

CARROL, Noel. “Danto”. In: Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006. p.203-204.

COMENAS, Garry. “Art vs. Life vs. Pop”. Disponível em: http://www.warholstars.org/Warhol_Danto_1.html Consultado em  23/04/2012.

DANTO, Arthur C. “O mundo da arte”. Artefilosofia. Ouropreto. n.1, jul.2006. p.13-25.

_____. A Transfiguração do lugar comum.

NEHAMAS, Alexander. El arte de vivir. Reflexiones socráticas de Platón a Foucault.Trad. Jorge Brioso. Valencia: Pre-textos,2005.

SHUSTERMAN, Richard. Pragmatist Aesthetics: Living, beauty, rethinking art. 2a ed. New York: Rowman and Littlefield, 2000.

_______, “Arte e Religião”. Trad. Inês Lacerda Araújo. Redescrições. Ano 3, Vol. 3, Disponível em: http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano3_03/trad.pdf  Consultado em: 22/04/2012

Marcos Carvalho Lopes

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