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A Aventura Ambígua

Severino Ngoenha, Giveraz Amaral, Jose Maria Langa, Eva trindade, Carlos Carvalho

Se lhes ordeno que vão à escola moderna, eles irão em massa. Lá, aprenderão todas as formas que não sabemos de unir a madeira a madeira. Mas, ao aprender, também esquecerão. O que irão aprender compensará o que irão esquecer? Gostaria de perguntar-vos: pode-se aprender isto, sem esquecer aquilo, e o que se aprende compensa o que se esquece?”  (Cheikh Hamidou Kané em A Aventura Ambígua)


Este é o título de um dos primeiros e mais extraordinários romances filosóficos africanos, que se situa na esteira dos grandes romances de Voltaire, Candide); de Dostoievski,  Os Irmãos Karamazov; ou de Sartre, La Nausée[1];  mas sobretudo dos escritos de Langston Hughes, Claude Mackay, Coute Cullen ou James Baldwin, todos protagonistas do Renascimento de Harlem.

Cheik Hamidou Kane inicia o seu livro A Aventura Ambígua narrando a história de um povo que depois de um longo dia de labor, de convivialidade e de invocação aos deuses e/ou aos seus antepassados, repousava prazerosamente – como justo – à sombra da lua, à espera de um novo sol. E, de repente, um enorme estrondo proveniente do porto sobressaltou e acordou a toda a comunidade. Não era a explosão de Hiroshima, de Nagasaki, do Iraque, das Torres Gémeas ou do Líbano; nem sequer teve os seus ecos. Foi um daqueles estrondos de invasões anónimas que se tornaram habituais e de que os países do hemisfério sul detêm o segredo e se tornaram cultura.

Ficou imediatamente claro para os habitantes que algo de muito grave estava a acontecer; os invasores – que se diziam descobridores – acabavam de desembarcar e, como reação, os homens, armas em punho, correram em direção ao porto para defender a própria terra; porque para eles, segundo Kane: a liberdade era mais importante do que a vida.

Podia tratar-se dos territórios dos ameríndios, invadidos pelas naves de Colombo e depois Cortês; ou dos portos de Cantão bombardeados pelos ingleses para forçar a abertura das suas portas para o comércio do ópio; ou até a invasão da terra dos aborígenes por James Cook. Tratava-se, porém  de uma invasão em África. Não contra os impérios do Gana, do Mali, do Songhai, do Zimbabwé ou de Gaza – a narrativa situa-se junto dos diallobés[2], e a ação simboliza uma repetição histórica de invasões que começaram no século XV e hoje se perpetuam nas Mocímboas da Praia.

Os homens, ciosos da sua liberdade, que se precipitaram ao porto (como também fizeram Tchaka, Mozila, Sochangane ou Ngungunhane[3]) estavam armados de lanças, para tchopar (do Chope[4]: Kutchopa) em prol da sua defesa e da defesa dos seus, numa luta aguerrida, corpo a corpo, que se veio a reacender além-atlântico, se tornou iconográfica com as resistências de Zumbi dos Palmares e se sofisticou modernamente em danças como a capoeira (onde a forma foi paulatinamente velando o conteúdo e o significado).

Só que os novos chegados, assim lhes chamou Kane, tinham armas modernas, bem mais sofisticadas, desconhecidas pelas nossas populações (para quem as armas não serviam a nenhuma veleidade de conquista ou de hegemonia, mas simplesmente como instrumentos de defesa e segurança). Para incompreensão total dos Diallobés, os novos chegados, sem saírem do porto, dispararam tiros de canhões que derrotaram rapidamente e sem reservas os homens (e não um exército) cuja força residia na vontade de conservar, mordicus (custe o que custar) a própria liberdade.

Depois da vitória militar, os novos chegados (filantropos, doadores, parceiros de cooperação, cujo nome muda segundo os tempos e as circunstâncias) não se limitaram a destruir a ordem social então existente, mas impuseram novas escolas: novas regras, estruturas e valores.

O saber deles, não estava só na grande capacidade de destruição – como demonstraram ulteriormente Hiroshima, Nagazaki, e hoje Mocímboa da Praia – mas também a construir coisas novas: cidades (Singapura, Arábia Saudita, Kuwait, Dubai), a instituir novos valores (liberalismo, egoísmo, ultraliberalismo, exploração, dominação, opressão, exclusão etc.).

Diante do dilema entre valores verdadeiros e valores funcionais (“a arte de ganhar sem ter razão”), mas humanamente duvidosos, a perplexidade dos Diallobés era compreensível, só que ela se transmutava em inércia que se prolongava, ao mesmo tempo que a postura dos novos chegados dominava (imperava), pelo brilho das aparências de que eram mestres, pelo que os invasores iam conquistando a juventude e, com ou (raramente) sem sexismo, as mulheres.  

Que fazer? Renunciar aos nossos valores de verdade e liberdade, de vida e fraternidade em favor de valores de conquista e usurpação? A hesitação das elites se prolongava e não pareciam prontos a tomar nenhuma decisão.

Uma mulher, chamada a Grande Rainha (Grande Royale), porque irmã do chefe, como muitas vezes as mulheres na história africana (Cleópatra, Ndzingha, Achavanjila, etc), interpela os homens e intima-os, vigorosamente, a tomar uma atitude: não podemos continuar nesta letargia, é imperioso que tomemos uma decisão, que façamos uma escolha entre estas duas referências axiológicas antagónicas: as nossas culturas que tanto amamos –  não só porque é herança dos nossos antepassados, mas, sobretudo porque assentes em posturas humanas, comunitárias e de verdade –  e os valores dos novos chegados, que ela apelida de “arte de ganhar sem ter razão”. [5]

Ela sentencia, filosoficamente, que não se pode ter isto, sem renunciar àquilo. Por isso, não obstante a dificuldade aporética, ocorre que façamos uma escolha, entre os nossos valores de verdade e a arte de ganhar sem ter razão. A Grande Rainha insta as lideranças Diallobés, e através deles as lideranças africanas e todo o mundo vencido e conquistado, a renunciar aos seus derrotados panteões axiológicos, a favor de um mundo que ganha – um mundo de conquista, de domínio, de predominância, de hegemonia – mas que não tem humanamente razão.

Segundo ela, a demonstração desta adesão – renúncia dos nossos valores autênticos, mas derrotados – passa por uma espécie de sacrifício abraâmico; retirar os filhos das elites, da educação tradicional (ritos de iniciação) e enviá-los aos templos do novo saber. Para Samba Diallo, o primogénito das elites diallobés, a direção era a Sorbonne como será depois para Césaire e Senghor; Londres para Kenyata e Nyerere; Estados Unidos para Nkrumah e Mondlane ou ainda a casa do império em Lisboa para Amilcar Cabral, Agostinho Neto ou Marcelino dos Santos.

O dilema da existência, entre vida e morte, ser e não ser, bem e mal, que envolvem a todos e cada um dos ritos e que haviam norteado o essencial de nossas questões existenciais, passavam a ser substituídas por outra dicotomia, da qual a Sorbonne tinha o segredo.

A qual dos pólos de oposição – e ideologias – sob a égide do racionalismo cartesiano o(s) Samba(s) Diallo(s) tinha(m) doravante que se afiliar? À filosofia do direito de Hegel ou ao Capital de Marx? Ao homem geneticamente bom, mas corrompido pela sociedade do Rousseau ou ao ‘homem naturalmente lobo do outro homem’ de Hobbes? A favor de que credo tinham de enunciar as suas crenças? Ao Teísmo de Judeus, Cristãos e Muçulmanos? ou ao Panteísmo de Baruch Espinosa ao ateísmo de Voltaire ou ao Niilismo de Nietzsche?

A ambiguidade da nossa aventura como africanos tomou um duplo sentido: abandonámos todo e qualquer valor africano, sem mesmo precisarmos que outros nos obrigassem a fazê-lo. Mesmo reconhecendo a sua proeminência existencial,  reservámos às nossas culturas um estatuto de folclore, ou pior, o estigma da superstição. Centrámo-nos em dicotomias ideológicas de um mundo que no seu conjunto, para parafrasear Césaire, trapaceia com os seus próprios princípios mas, sobretudo, olha para nós com suficiência e desprezo.

Cinco séculos depois de os ter feito abandonar as suas terras e crenças, um século depois do fim oficial da escravatura, os africanos da diáspora ainda hoje lutam para serem admitidos no dito ‘novo mundo’ e para serem incorporados e aceites nos novos valores que foram forçados a adoptar.

Nós, africanos residuais, apesar de nos aproximarmos com a escola, educação, hábitos, sistemas políticos e termos aderido aos sistemas linguísticos e culturais (francofonia, Commonwealth, PALOPs), continuamos marginais. Quanto mais nos aproximamos e nos modernizamos, mais a modernidade e os seus fatores se afastam de nós, tradicionalizando-nos e inventando sempre novas formas de diferenciação (raciais, políticas, económicas, culturais, tecnológicas) novas fronteiras, passaportes, vistos e novas formas de segregação.

Quando vimos que, quanto mais aumentavam os discursos de desenvolvimento e de ajuda, mais eles ficavam ricos e nós pobres, decidimos num acto de desespero que a única solução era nos desconectarmos deles (Samir Amim com a desconexão). Só que eles com a sua globalização não aceitaram: queriam-nos juntos, mas separados, a curta distância para nos terem à mão, para continuarmos a produzir matéria-prima para eles, a cultivar os seus campos, a construir as suas cidades, a limpar as suas mesas, a servir as suas casas, a cuidar das suas crianças e velhos: a sermos economicamente úteis a eles e deles dependentes.

E aqui estamos, depois de guerras violentas entre nós, de massacres em nome de princípios que não só não são nossos, mas que sabemos, sobretudo, não serem verdadeiros: uns machelo-russianos, outros Dlhakama-hobbesianos e ainda outros Marcelino-marxianos; os nossos acordos de paz pareciam ter feito a síntese, declarado fukuyanamente o fim da história, com Marx-Machel-Marcelino retumbantemente derrotados, e com o mercantilismo neoliberal como o grande vencedor sem razão. Só que os que ganham sem ter razão, não se limitam a querer ganhar sempre, mas a ganhar sempre mais e, em nome do ‘mais’, a ganhar sem limites, e para tal, criam e recriam novos termos e teorias de dominação.

O que eles têm nunca lhes chega, querem também a terra da sobrevivência dos nossos pobres, como no Prosavana, mais os rubis e outros valores do nosso subsolo, os peixes e mariscos dos nossos mares, o petróleo e o gás dos nossos oceanos. Se para isso e todo o resto for preciso, criam-se Muchungues, Casas-Bananas, e até se deslocam crianças, mulheres e populações pobres à força: “a arte de ganhar sem nunca se preocupar com a razão” é um dos seus lemas e não hesitam em usá-lo.

O pior é que os melhores entre nós, aqueles que deveriam aprender isto, esqueceram completamente aquilo, e com aquilo esqueceram o nosso povo, eles esqueceram os nossos valores de comunhão e aprenderam o que Marx chamou o feitiço da mercadoria: a dignidade, a vida, o povo e a humanidade sacrificáveis em nome e glória da pecúnia. Não é isso que aprenderam os nossos “Sambas Diallos” nas Sorbonnes, os nossos Changues e Nhangumelos (e os seus chefes)?

Diante do êxito dramático e necrológico das nossas opções, deveríamos voltar ao discurso da Grande Rainha: vale verdadeiramente a pena ir para escola e adquirir os valores daqueles que ganham sem ter razão? A Grande Rainha tem a certeza de termos de escolher este mundo dos vencedores sem razão?

Depois do Estádio da Machava[6] talvez tivéssemos que passar por Bandung, onde começou o nosso processo de lomuku (desmame) político – mas também epistemológico e histórico – que ainda não levámos a bom porto. Ir a Bandung não para provincializar a Europa, mas para convocar todos os nossos curandeiros, invocar os nossos antepassados e com eles enterrar o feitiço da ‘mercadoria’. Ir a Bandung, com um fembador (exorcista), como condição para descobrir outras maneiras de ser homem e construir a humanidade.

Porém, inshallah, nunca nos falte uma Grande Rainha (reserva moral) que nos obrigue a tomar decisões sobre o nosso destino como povo; que nos recorde que a falta de resistência aos novos chegados resultou em uma dependência política, económica e social, e que a ausência de resistência aos chegados de hoje, nos leva a uma ainda maior dependência; uma reserva moral que nos recorde que as vitórias e as leis dos canhões (dos novos chegados de ontem, como dos poderosos de hoje) são muitas vezes sem razão e que a razão está do lado da palavra, do diálogo e da tolerância, que não se compadece com perseguições, pancadarias, chantagens, assassínio etc.; que nos ensine que a tolerância e o consenso são os instrumentos fundamentais de uma democracia e, por isso mesmo, as instalações dos jornais não são para queimar nem os jornalistas para abater; que a Constituição é para respeitar e não para deturpar (e ainda menos mudar) como condição para a possibilidade de uma vida pacífica.

Inshallah, nunca nos falte uma Grande Rainha, para que, mesmo diferentes, nos respeitemos: afinal somos Ubuntu e buscamos (re)construir uma sociedade sustentada pelos pilares da comunhão e da solidariedade, onde a importância das alianças e do relacionamento das pessoas umas com as outras é o início e o fim. Se temos mesmo que continuar a ir para as Sorbonnes, pelo menos aprendamos com Platão (República, Livro III) que um bom governo depende das virtudes dos governantes.


[1] Que valeu a Sartre, juntamente com o seu teatro, o prêmio Nobel da literatura, que ele justamente recusou, denunciando a sua mundanidade.

[2] Pequeno povo do actual Senegal;

[3] Heróis da resistência à ocupação colonial na África sub-sahariana.

[4] Os chopes (maChope) são um grupo étnico do sul de Moçambique, localizados em grande número na província de Inhambane.

[5]  A Grande Rainha afirma não poder oferecer uma certeza ou uma fé em relação o melhor caminho a ser tomado: “Simplesmente, tiro a consequência de premissas que não queria. Cem anos atrás, nosso avô, junto com todos os habitantes deste país, foi acordado uma manhã por um clamor que subia do rio. Ele pegou seu rifle e, seguido pela elite, correu para os recém-chegados. Seu coração não tinha medo e ele valorizava a liberdade mais do que a vida. Nosso avô, assim como sua elite, foi derrotado. Por quê? Como? “Ou” O quê? Apenas os recém-chegados sabem disso. Você tem que perguntar a eles; você tem que aprender a arte de vencer sem ter razão. Além disso, a luta ainda não acabou. A escola estrangeira é a nova forma de guerra que aqueles que vieram estão travando contra nós, e devemos mandar nossa elite para lá, enquanto esperamos para empurrar todo o país. É bom que mais uma vez a elite preceda. Se houver risco, ela está mais bem preparada para evitá-lo, porque é a mais apegada ao que é. Se houver um ativo a ser sacado, ela deve ser a primeira a adquiri-lo. Isso é o que eu queria dizer a você, meu irmão. E, como o mestre está presente, gostaria de acrescentar isso. Nossa determinação de enviar os jovens nobres do país para escolas estrangeiras só será obedecida se começarmos enviando nossos próprios filhos para lá. Então, acho que seus filhos, meu irmão, assim como nosso primo Samba Diallo, devem mostrar o caminho” (L’aventure ambiguë. Parte 1, Cap.3).

[6] Ver o artigo de opinião publicado no Jornal Savana de 07/08/2020. “A METÁFORA DO ESTÁDIO DA MACHAVA”, por Severino Ngoenha, Giverage do Amaral, José Maria Langa, Eva Trindade, Carlos Carvalho. Disponível também no link: https://filosofiapop.com.br/texto/a-metafora-do-estadio-da-machava/

Marcos Carvalho Lopes

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