Hesíodo talvez concordava mais com Platão do que este teria admitido: a força não gera direito e ninguém escapa ao que merece
Gonçalo Armijos Palácios
Na sua República, Platão começa um diálogo entre Sócrates e seus interlocutores que leva ao tema central, a definição de justiça. Dos dez livros que compõem a obra, os três primeiros estão dedicados a criticar posições contrárias. Entre elas, a de que a justiça não é nada mais do que o interesse dos que governam, defendida por Trasímaco, e a crença, aparentemente muito divulgada na época, de que valia mais ser injusto mas era bom passar por justo, pois o injusto seria feliz e o justo, desgraçado.
Os responsáveis, direta e indiretamente, pelas últimas opiniões seriam os grandes poetas Hesíodo (fl. 800 a.C.) e Homero (fl. 725 a.C.). Eles, com efeito, ao cantar os feitos dos deuses e heróis, e ao apresentar os deuses como sendo capazes dos piores crimes, teriam disseminado valores contrários aos que deveriam prevalecer na cidade. Como sabemos, os crimes mais hediondos começam a acontecer com o aparecimento desses deuses. Segundo a mitologia grega, Gaia (Terra) nasceu do Caos. Sozinha, gerou Uranos (o Céu), as montanhas e o mar. Da união de Gaia e Uranos, nasceram vários deuses, entre eles Cronos (o Tempo). Mas Uranos odiava seus filhos e, depois de nascer, os mandava prender no Tártaro, para desespero de Gaia (quem armou Cronos contra seu pai). Este atacou Uranos e o destronou, sem se esquecer de arrancar seus testículos e jogá-los ao mar. Por sua vez, Cronos ficou sabendo de Uranos e Gaia que um dos seus filhos o destronaria. Para evitar esse destino, Cronos os engolia logo depois de nascer. A esposa de Cronos, sua irmã Réia, quis evitar esse destino para seu filho caçula, Zeus. Para isso, foi dar à luz numa caverna em Creta e, envolvendo uma pedra num pano, fez com que Cronos a engolisse em lugar de Zeus. Quando adulto, Zeus destronou Cronos e fez com que ele vomitasse seus irmãos.
O que podemos ver nesse período inicial não é pouca coisa, é parricídio, canibalismo, mutilação e violência extrema. Não é por acaso que Xenófanes (c. 570-528 a. C.) se queixou dessa imagem dos deuses, afirmando num célebre fragmento: “Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quando entre os homens merece repulsa e censura: roubo, adultério e fraude mútua”.
Já no final do Livro II da República, Platão começa uma crítica dura contra os dois poetas e, especialmente, contra Homero. Referindo-se às fábulas que não devem ser contadas e perguntado a que fábulas se referia, Sócrates diz: “As que nos contaram Hesíodo e Homero, esses dois e os restantes poetas. Efetivamente, são esses que fizeram para os homens essas fábulas falsas que contaram e continuam a contar”. Pouco depois, dá um exemplo do que achava inaceitável: “Em primeiro lugar… a maior das mentiras acerca dos seres mais elevados, que foi feita sem nobreza, é que Uranos tenha tido o procedimento que Hesíodo lhe atribui, e depois como Cronos se vingou dele. E os atos de Cronos e o que sofre por parte do filho, ainda que supuséssemos ser verdade, não deviam contar-se assim descuidadamente à gente nova, ainda privada de raciocínio…”. (378 a)
Depois dessas duas referências à Teogonia, de Hesíodo, encontramos uma série de passagens críticas citando a Ilíada e a Odisséia, de Homero, o que continua ao longo do Livro III. Hesíodo, porém, não aparece citado.
A insistência de Platão em criticar os poetas, e particularmente Homero, explica-se pela influência negativa que suas obras teriam exercido na concepção de justiça dos gregos. Uma concepção que Platão achava completamente falsa e destrutiva. É a concepção de que, como disse acima, a injustiça vale mais do que a justiça e que só por prudência é bom parecer justo. Noutras palavras, a justiça não seria um bem em si. Platão, pelo contrário, quer defender na República uma concepção de justiça que independa de interesses individuais, uma concepção ampla e, num sentido, essencialista. Sua concepção essencialista de justiça, no entanto, não é desprendida da história, muito pelo contrário, é, paradoxalmente, essencialista e histórica ao mesmo tempo. Há ações que são essencialmente justas e tais ações só encontram seu sentido na vida dos homens, isto é, na sua vida política, dentro e não fora da história. Ninguém pode ser justo fora da pólis.
A concepção de justiça de Platão não é radicalmente diferente da que as pessoas costumam ter hoje. É uma concepção da justiça como algo necessário, como algo que ultrapassa a lei escrita. Mais tarde ou mais cedo, ninguém escapa à justiça, mesmo que escape à lei. Nossa concepção de justiça está intimamente ligada à nossa idéia de retribuição. Na República, Platão atribui a Simônides justamente essa concepção de justiça que é pressuposta na seguinte definição: justiça é dar a cada um o que é seu. Nos fragmentos existentes de Simônides, lamentavelmente, não se encontra tal definição. Se ele deu essa definição, a obra em que o fez se perdeu.
A questão aqui é ver se realmente os poetas teriam acreditado que a justiça em si não existe e que é melhor ser injusto mas parecer justo. Confesso que essa dúvida me levou a ler Os trabalhos e os dias, de Hesíodo. Nessa obra, podemos entrever uma concepção de justiça completamente diferente da que esperaríamos encontrar se confiássemos completamente em Platão. Isto é, nada há nessa obra que indique que Hesíodo não acreditasse numa justiça nos moldes platônicos, ou próxima dela. No início da obra, Hesíodo relata o mito das várias raças que os deuses criaram. Primeiro, foi a de ouro, que hoje são os protetores dos homens, os deuses. Depois foi feita uma raça de prata, que em nada se assemelhava à de ouro, “nem no corpo, nem no espírito”. Faziam mal uns aos outros e não se lembravam de honrar os deuses. Depois Zeus fez a raça dos homens de bronze, em nada semelhante aos de prata, estes eram terríveis e fortes. Eram violentos e duros no coração. Na continuação, foram feitos outros, mais parecidos com os deuses e mais nobres que os anteriores, os heróis ou semideuses. Alguns morreram nos campos de batalha, mas foram abençoados, honrados e cobertos de glória. Por fim, uma quinta raça foi feita, a dos homens de ferro. São os que têm que trabalhar dia após dia, e padecem de doenças e sofrem. Mas também podem ser felizes. São estes que fazem violência uns aos outros, não respeitam os amigos, os irmãos nem pagam a nutrição que receberam dos seus pais, porque agem “como se a força gerasse o direito”. Bem, nada disso é louvado por Hesíodo, muito pelo contrário. Destas, e de passagens posteriores, vemos que o melhor é agir de outra maneira completamente diferente. Além disso, Hesíodo é claro: ninguém escapa ao seu castigo. De qualquer forma, há aqui uma antecipação crítica à teoria de Trasímaco: o poder não gera o direito!
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |