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A crítica aos poetas (III): Hesíodo, a justiça e a esperança

Gonçalo Armijos Palácios

Nossa esperança no prêmio e no castigo mostra que o ser humano não pode viver sem confiar numa justiça soberana que, implacável e inapelável, está além do controle humano

Platão pensava que as obras de Hesíodo e Homero continham implícita (e mesmo explicitamente) uma concepção de justiça que não convém a um Estado bem organizado. Para o filósofo, se as crianças escutassem mitos que fizessem apologia à ações vis, ou que apresentassem heróis e deuses cometendo as maiores infâmias, a tendência seria que elas tentassem imitar mais tarde essas ações tornando-se cidadãos desrespeitosos da lei. Mas a leitura da Teogonia e Os trabalhos e os dias, do primeiro poeta, torna difícil concordar com as críticas que Platão tece em República.

Na Teogonia, como tentei mostrar nos artigos anteriores, vemos que os primeiros atos de violência entre os deuses, e que mereceriam nossa reprovação, são posteriormente punidos. Desse modo, as ações cruéis de Uranos e Cronos contra seus respectivos filhos não deixam de ter seu castigo. Assim, Uranos, que mandara prender seus filhos sem um motivo justo, é deposto violentamente por um deles, Cronos. E, apesar de que a ação de Cronos tenha sido justa pela reparação que fizera, seu motivo, simplesmente chegar ao poder, não o era. Em conseqüência, por ter procedido pelo motivo errado contra seu pai, e por ter agido injustamente contra seus filhos, Cronos também foi punido. Nesses primeiros fatos vemos ações e reações reparadoras. E as coisas ficam no seu devido lugar quando Zeus toma o poder. Pelos adjetivos que Hesíodo usa para descrever o caráter de Zeus podemos perceber que esse deus passa a personificar o bem e o justo. Da leitura da Teogonia fica a clara impressão de que se há uma moral, ela não pode ser outra que esta: a ordem devida é sempre e necessariamente restaurada e a reparação é feita. Atrela-se, assim, a noção de justiça a de necessidade. É a necessidade de que se restaure a ordem devida, que permite aos homens esperar que, mais cedo ou mais tarde, os justos sejam recompensados e os injustos, castigados.

É isso que podemos ver nessa obra que já não tem como tema central os deuses, mas os próprios homens. Com efeito, em Os trabalhos e os dias, centrada na vida dos seres humanos, há um belo recurso poético que liga a justiça à esperança.

Nesse poema, Hesíodo fala em primeira pessoa a seu irmão Perses, com quem tem um litígio pela herança dos bens e das terras do pai. Na partilha, Perses ficou injustamente com a parte maior. O poema todo, então, poderia ser concebido como variações de um tema central: que o justo está ligado à noção de eqüidade, de medida, de equilíbrio; o injusto, pelo contrário, ao excesso.

Nos primeiros versos de Os trabalhos e os dias, Hesíodo parece clamar pela intervenção reparadora de Zeus. Depois de invocar as musas, nos dois primeiros versos, Hesíodo fala de Zeus: “Por ele mortais igualmente desafamados e afamados,/ notos e ignotos são, por graça do grande Zeus./ Pois fácil torna forte e fácil o forte enfraquece,/ fácil o brilhante escurece e o obscuro abrilhanta,/ fácil o oblíquo apruma e o arrogante verga/ Zeus altissonante que altíssimos palácios habita./Ouve, vê, compreende e com justiça endireita sentenças/ Tu!”1

Hesíodo, ao que parece, quer a intervenção de Zeus, isto é, a intervenção reparadora da justiça divina, para endireitar o que está torto, para pôr as coisas no seu devido lugar – que é dar a cada irmão uma parte igual dos bens do pai. Zeus, note-se, com justiça, “endireita sentenças”. Fica para Hesíodo, então, a esperança de que a sentença dos homens, injusta, seja anulada pela ação de uma justiça superior, implacável, inapelável.

Para melhor apresentar seu caso contra Perses, Hesíodo recorre a mitos. Os mitos que tanto preocupariam Platão séculos depois. O primeiro é o mito das duas lutas. Há, diz Hesíodo, duas lutas. Uma é louvável, a outra, condenável. Aquela é construtiva, esta, destrutiva. Esta é a “guerra má”, que “o combate amplia”. A outra é a que nos leva a trabalhar, é a luta pelo sustento. Isto é, não só para simplesmente viver, mas para viver melhor. É a competição sadia, produtiva, criadora. “É a que nasceu primeira … e a pôs o filho de Cronos … no éter, nas raízes da terra e para homens ela é melhor”, já que “desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro [ficar] rico apressado em plantar, semear e a casa beneficiar”. (Os trabalhos e os dias, versos 17-23)

Enquanto a Teogonia mostra os piores crimes sendo cometidos e finalmente punidos, em Os trabalhos e os dias o poeta trata da injustiça relacionada com o que de específico tem a vida humana: o trabalho. Tanto o trabalho como seu fruto: a propriedade. Daí “próprio” e “impróprio”. Desse modo, “o fruto do trabalho” e “o fruto do meu trabalho” dizem, ou devem dizer, o mesmo, por ser a propriedade conseqüência do trabalho. Não sendo próprio o trabalho alheio, jamais poderia ser justo, portanto, apropriar-se do que, não tendo surgido graças ao nosso esforço, só veio a ser pelo trabalho do outro e passou às nossas mãos por uma ação imprópria, isto é, não própria. Assim se dirige Hesíodo ao irmão que, em vez de se apropriar dos bens do pai pelo mérito do trabalho, o faz pela luta má, pela querela, pelo recurso ao combate litigioso: ‘‘Ó Perses! mete isto em teu ânimo;/ a luta malevolente teu peito do trabalho não afaste/ para ouvir querelas na Ágora e a elas dar ouvidos./ Pois pouco interesse há em disputas e discursos/ para quem em casa abundante sustento não tem armazenado/ na sua estação: o que a terra traz, o trigo de Deméter’’. (vv. 27-31)

Muito se diz sobre terem os antigos gregos desprezado o trabalho. Isso pode valer para uma época posterior, para a época clássica. Na época arcaica, que é a de Hesíodo, vemos um poeta louvar o trabalho e defender uma idéia de justiça baseada na relação necessária entre esforço pessoal e propriedade. À diferença do que podemos inferir das críticas de Platão, os poemas de Hesíodo podem ser considerados como um canto à esperança e, no fundo, um hino à justiça.

1 Hesíodo. Os trabalhos e os dias. (Trad. Mary de Camargo Neves Lafer.) São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 21.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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