O trabalho é o que dignifica o ser humano o e o torna um animal ético
Além de ser um hino à justiça, como disse no último artigo, o poema Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, enaltece o trabalho. O trabalho, além de ser para os homens uma necessidade, representa, na verdade, seu destino.
Há uma notável coincidência entre a concepção judaico-cristã e grega (arcaica) do trabalho. Com efeito, Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso por terem comido do fruto proibido. Além da expulsão do Paraíso, como sabemos, os homens teriam de ganhar o pão com seu suor e as mulheres parir seus filhos com dor. Os dias tranqüilos e felizes no Paraíso ficariam para sempre naquele passado idílico. A obrigação imposta aos homens, então, foi a de trabalhar durante toda sua vida. A explicação mítica que encontramos em Hesíodo é surpreendentemente semelhante. Por ter recebido de Prometeu o fogo celeste (roubado do Olimpo), os homens seriam castigados por Zeus e seus dias felizes, sem preocupações, doenças ou sofrimentos, também terminariam irrevogavelmente. O castigo consistiu na obrigação de trabalhar. Nos dois casos vemos a transgressão de uma vontade superior. Algo que não devia fazer-se foi feito. Comer da Árvore do Bem e do Mal, ter o fogo do Olimpo. Após comer a maçã, Adão e Eva perceberam que estavam nus. Noutras palavras, deixaram sua inocência, e sua ignorância, para trás, mas acederam ao conhecimento: o da diferença entre o bem e o mal. No caso dos gregos, chegou-se a conhecer o segredo do fogo. O conhecimento, então, tem um preço, e um preço alto a ser pago: trabalhar durante a vida inteira. Mas, por outro lado, é pelo trabalho, pelo próprio castigo, isto é, que o homem se redime e alcança a felicidade que na Terra lhe é possível.
É o trabalho, perceba-se, o que passa a dar à vida um novo sentido. A vida toda se organiza em volta dele. É ele que estará no cerne e será a essência dos nossos valores éticos, pois todos nossos costumes (que é o que ethos significa) vão estar necessariamente encadeados ao tipo de atividade produtiva que desenvolvamos. O certo e o errado, em conseqüência, serão determinados tendo em vista se propiciam ou não a continuidade do tipo de atividade produtiva da comunidade. (Não interessa se realmente a propiciam, o que importa é que se pense que o fazem.)
A pergunta “por que o homem tem de trabalhar” é respondida assim em Os trabalhos e os dias: “Oculto retêm os deuses o vital para os homens;/ senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar;/ acima da fumaça logo o leme alojarias,/ trabalhos de bois e incansáveis mulas se perderiam”.¹ O que é necessário para a vida está oculto aos homens. Enterrado no solo, fundo no mar, distante nos céus, longe do alcance do homem que não vive debaixo da terra como os insetos, que não nada como os peixes, que não voa como as aves. Assim, se ele quer recolher frutos da terra, peixes do mar, aves do céu, é preciso que se esforce, que tire o fruto da árvore ou abra fendas no solo; que trance redes ou afie anzóis; que aponte flechas, vergue arcos e tencione cordas. Que se valha do aço, do próprio fogo roubado do Olimpo, que corte varas, que dome as feras, que amanse os bois. Que acorde cedo e durma tarde. Não fosse esse seu destino, como diz o poeta, poderia “comodamente em um só dia” trabalhar, “podendo em ócio ficar”. Mas seu destino é outro: é se agastar, se esforçar, tirar com dificuldade o que não está à vista, o que está oculto porque os deuses o esconderam.
É que somos a raça de ferro, diz o poeta. Os homens dessa raça “nunca durante o dia/ cessarão de labutar e penar e nem à noite de se destruir;/ e árduas angústias os deuses lhes darão./ Entretanto a esses males bens estarão misturados”. (vv. 76-79) Entre os bens que a esses males se misturam, obviamente, estão aqueles que resultam do próprio trabalho. Zeus, impondo-lhes o trabalho, não os condenou a morrer, mas a viver, e o meio de sua sobrevivência é aquilo que representa o castigo: o trabalho. O trabalho é, ao mesmo tempo, pena e meio para mitigar a pena. Assim, apesar de ser a pena que devem pagar, sua alegria decorre da possibilidade de esse trabalho frutificar. O que pressupõe que a terra seja fértil, o mar rico em peixes e o céu em aves. De que o homem, trabalhando, possa prosperar, melhorar sua casa, encher seu celeiro; em duas palavras, produzir, criar. Castigo cruel e incompreensível seria se tivesse que trabalhar para não colher, caçar sem poder matar, tirar a rede sem conseguir pescar, como se tivesse sido obrigado a beber água num crivo. Mas a racionalidade do trabalho é outra: que seu esforço dê frutos que saciem sua fome e sua sede, que permita ao homem se defender do frio costurando suas roupas, da chuva e do sol erguendo albergues, das enchentes construindo diques.
A injustiça, por outro lado, advirá da quebra do equilíbrio e da racionalidade do trabalho, quando se instaure a ambição entre os homens, quando se almeje o excesso e se produza o desperdiço, ou quando nasça o desejo de se apropriar do esforço alheio. Uma vez que isso aconteça, novos males virão. Aliás, saberemos que o fim da raça de ferro se aproxima, segundo Os trabalhos e os dias, quando não se respeite mais a justiça, quando o irmão não seja mais caro ao irmão, quando os filhos desonrem os pais “tão logo estes envelheçam” e os censurem, “com duras palavras insultando-os; cruéis; sem conhecer o olhar dos deuses e sem poder retribuir aos velhos pais os alimentos”. (vv. 184-188) Teremos outros indícios quando vejamos os homens fazendo justiça com suas próprias mãos. Isto é, quando a lei dependa do poder que cada um tem para fazer o que lhe aprouver: “com a lei nas mãos, um do outro saqueará a cidade, graça alguma haverá a quem jura bem, nem ao justo nem ao bom; honrar-se-á muito mais ao malfeitor e ao homem desmedido; com justiça na mão, respeito não haverá; o covarde ao mais viril lesará com tortas palavras falando e sobre elas jurará”. (vv. 189-194) Chegaremos ao fim, portanto, quando o interesse do todo seja substituído pela ambição particular; quando a justiça de particulares, pela mera força, prevaleça sobre a justiça do todo.
Nessas passagens de As palavras e os dias podemos ver até que ponto a visão de justiça de Hesíodo descansa sobre a categoria de trabalho. A vida do homem, com efeito, o poeta a fundamenta no trabalho. O trabalho dá racionalidade, sentido e dignidade à vida do homem.
O trabalho, contudo, não é uma atividade individual. É um esforço coletivo e uma conquista social. Ao condicionar o tipo de vida que devemos viver, é o trabalho que determina os costumes e, conseqüentemente, o convívio com os demais. Desse modo, o trabalho é a base de nossos valores éticos e o alicerce da própria justiça.
¹ Hesíodo. Os trabalhos e os dias. (Trad. Mary de Camargo Neves Lafer.) São Paulo: Iluminuras, 2002, vv. 42-46.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |