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A crítica aos poetas (VII): A fábula do gavião e o rouxinol

É impossível que uma sociedade construa sua noção de justiça sobre a base do relativismo de classes e do oportunismo partidário: na força não reside o direito!

Perto do final do Livro II de sua República, Platão pergunta pelo tipo de educação que deveriam receber os líderes de uma cidade bem governada. E mantém que, desde crianças, seria necessário que aprendessem música e ginástica. Desde que a poesia não era recitada e sim cantada, a educação musical naquela época incluía necessariamente a literatura. Letra e música eram duas partes de uma coisa só. Assim, usavam-se cantos para educar as crianças, cantos que contavam mitos, fábulas: os poemas. E tais poemas cantados eram, fundamentalmente, os de Hesíodo e Homero.

Platão demonstra uma preocupação enorme pela educação das crianças, pois percebeu claramente a relação entre o que as crianças aprendem nesses seus primeiros anos de vida e o caráter do adulto. Assim, é esse o sentido da seguinte pergunta de Sócrates a Adimanto: “Pois é sobretudo nessa altura [quando se é criança] que se é moldado, e se encerra a matriz que alguém queira imprimir numa pessoa?” “Absolutamente”, responde Adimanto.1 Por isso Platão pensava que não se devia permitir “que as crianças escutem fábulas fabricadas por quem calhar, e recolham na sua alma opiniões na sua maior parte contrárias às que, quando crescerem, entendamos que deverão receber.” A melhor solução que Platão encontrou para evitar a deformação das mentes das crianças foi a censura: “Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que forem boas, e proscrever as más. (…) Das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se”. E as maiores e mais perniciosas fábulas, segundo Platão, eram “as que nos contaram Hesíodo e Homero — esses dois e os restantes poetas. Efetivamente, são esses que fizeram para os homens essas fábulas falsas que contaram e continuam a contar”. “Quais são elas então — pergunta Adimanto — e em que as censuras?” “Aquilo — responde Sócrates — que se deve censurar antes e acima de tudo, que é sobretudo a mentira sem nobreza.”

Pelo que temos visto dos mitos de Hesíodo, tanto na Teogonia como em Os trabalhos e os dias, dificilmente poderíamos inferir que aquelas fábulas estejam próximas de ser “mentiras sem nobreza”. Platão, com razão, se preocupa com a imagem que as crianças, e qualquer pessoa, possam construir de deuses e heróis retratados como fracos, mentirosos, vingativos. Na Teogonia, é verdade, vemos lutas entre os deuses, mas há uma trama cuja moral é justamente condenar o despropósito, a arbitrariedade e a injustiça. Diz Platão por boca de suas personagens e se referindo aos poetas e seus mitos: “Está certo que se censurem tais erros. Mas então como e em quê os acusaremos?” “Em primeiro lugar — responde Sócrates — a maior das mentiras e acerca dos seres mais elevados, que foi feita sem nobreza, é que Uranos tenha tido o procedimento que Hesíodo lhe atribui, e depois como Cronos se vingou dele. E os atos de Cronos e o que sofreu por parte do filho [Zeus], ainda que supuséssemos ser verdade, não deviam contar-se assim descuidadamente a gente nova, ainda privada de raciocínio…” (377e-378a)

Como disse num artigo anterior, os atos arbitrários dos deuses, que vimos na Teogonia, terminam com a justiça sendo finalmente feita. Efetivamente, as arbitrariedades de Uranos e Cronos, isto é, a falta de ordem e medida que reinavam no início, chegam ao fim quando Zeus destrona Cronos. O que podemos inferir de todos esses episódios, como vimos, é que mesmo no plano divino as arbitrariedades e injustiças são devidamente punidas. A moral da Teogonia, noutras palavras, é a de que nem os deuses escapam ao seu destino: receber o que por justiça lhes corresponde. Com efeito, os deuses que no início ultrapassaram os limites foram punidos e instaurou-se, na pessoa de Zeus, o equilíbrio e a justiça. Na Teogonia termina-se louvando, em Zeus, o deus justo e ponderado que assim governa os céus e a Terra. Em Os trabalhos e os dias vemos, mais uma vez, louvar-se a justiça, enfatizando-se especialmente a justiça dos homens.

Nessa obra encontramos, a partir do verso 202, a fábula do gavião e o rouxinol. Vou permitir-me reproduzi-la para que os leitores possam decidir por si mesmos se o que Hesíodo defende é outra coisa que não a justiça entendida como o oposto da arbitrariedade e o abuso do poder: “Agora uma fábula falo aos reis mesmo que isso saibam./ Assim disse o gavião ao rouxinol de colorido colo/ no muito alto das nuvens levando-o cravado nas garras;/ ele miserável varado todo por recurvadas garras/ gemia enquanto o outro prepotente ia lhe dizendo:/ ‘Desafortunado, o que gritais? Tem a ti um bem mais forte;/ tu irás por onde eu te levar, mesmo sendo bom cantor;/ alimento, se quiser, de ti farei ou até te soltarei./ Insensato quem com mais fortes queira medir-se,/ de vitória é privado e sofre, além de penas, vexame’.”2

Não pode restar a menor dúvida de Hesíodo estar ali atacando a tese de que a justiça seja decorrência do poder ou, noutras palavras, de que na força residiria o direito. Por isso, dirigindo-se a seu irmão, beneficiado na partilha dos bens do pai pela justiça torta dos homens, o adverte logo a seguir: “Tu, ó Perses, escuta a Justiça e o Excesso não amplies!/ O Excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso/ facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona/ quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado/ é preferível: leva ao justo: Justiça sobrepõe-se a Excesso/ quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo”. (vv. 213-218)

A deusa Justiça, então, não permite que o excesso prevaleça e que o poderoso leve indevida vantagem. O poderoso e prepotente pagará pelo abuso feito contra o fraco, no final. Este ‘no final’ é importante. O abuso pode dar certo, por um tempo; no final, a Justiça pune o Excesso. Claramente temos em Hesíodo um parâmetro superior de justiça que vai muito além do que Trasímaco defendera na época de Platão e com o que o próprio Platão concorda: o poder nos gera direito!

1 Platão. República. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian. (Trad. Maria Helena da Rocha Pereira.) 7ª. ed., 1973. A passagem está no Livro II, 377b.
2 Hesíodo. Os trabalhos e os dias. (Trad. Maria de Camargo Neves Lafer.) São Paulo : Iluminuras. 2002, vv. 202-211.

Imagem: Teseu e o Minotauro. Coleção do Museu J. Paul Getty, Malibu, Califórnia.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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