0

A filosofia anti-colonial nos PALOP – IX

Luís Kandjimbo |* Escritor

Quando se lê as deliberações aprovadas pela II Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), realizada em 1965, na cidade de Dar-Es-Salaam, compreendemos melhor o sentido da afirmação segundo a qual o anticolonialismo é filosofia e o nacionalismo é ideologia.

Sem pretender ignorar a existência de outros grupos políticos e movimentos de libertação nacional, as organizações políticas que nessa ocasião se reuniram na capital tanzaniana traduziram claramente a definição do inimigo comum. Há cinco anos se tinha formulado expressamente um novo princípio jurídico internacional: “Todos os povos têm o direito à autodeterminação; em virtude deste direito, determinam livremente o seu estatuto político e prosseguem livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural”.

Sujeito do direito

Independentemente de ser um Estado que violava as normas do Direito Internacional, Portugal tinha a obrigação jurídica de descolonizar os povos e os territórios que ocupava sob a designação de “províncias ultramarinas”. Tratava-se de um direito dos povos Africanos à descolonização. A ausência do substantivo e correspondente determinativo – “dos povos”–  do enunciado “direito à descolonização” e o facto de não ocorrer qualquer qualificação desse substantivo que devia fazer referência a um sujeito activo e titular do direito, deixa a impressão de inexistência de um sujeito passivo.

Ao caracterizar a condição de sujeito activo do direito à descolonização, os líderes dos movimentos de libertação nacional formulavam ideias que permitiam identificar a temporalidade histórica da presença portuguesa em África e a abominável natureza do regime colonial português.Do ponto de vista descritivo eem breve síntese da leitura dos textos,sublinho quatro elementos definidores desse inimigo comum.  Em primeiro lugar, a sua vocação repressiva, revelando-se como um sistema de opressão e exploraçãodos povos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Do mesmo modo, subjugava o povo português.Em segundo lugar, o seu carácter racialista, sendo a discriminação racial uma das suas manifestações primárias em conexão com uma assimilação selectiva, ideologicamente sustentada pelo luso-tropicalismo. Em terceiro lugar, a hegemonia cultural como negação das matrizes civilizacionais de longa duração dos povos Africanos, dando lugar a resistências multiformes e ao engajamento dos intelectuais, numa perfeita demonstração do conhecimento intergeracional sobre o fenómeno colonial e o imperialismo mundial. Em quarto lugar, a recusa de negociações e da via pacífica para a solução do problema em que se fundava a luta anti-colonial, o exercício do direito à autodeterminação dos povos,donde derivava a justificação da violência sistemática contra o domínio estrangeiro,em prol da independência dos povos colonizados.

Portanto, a razão de ser da luta pelo direito à descolonização exprime-se através de um fundamentode natureza histórica emoral que sustenta os direitos humanos. O direito à autodeterminação, que éuniversal, está intrinsecamente vinculado à condição natural dos povos. Assim, não pode haver justificação válida para o colonialismo e colonização de outros povos.

Direito dos povos

O “direito à descolonização” nunca foi um direito positivadono mundo ocidental. Passou a sê-lo após trágicas experiências de guerras na Europa e outras contra as resistências de povos de outros continentes, quando a geopolítica adquiriu valor matricial para a orientação e comportamento dos Estados, sendo vital a gestão da correlação do espaço e dos factores de potência que os definem, enquanto unidades políticas. Pode dizer-se que, na sua génese, o “direito à descolonização” é efectivamente um direito dos povos que corresponde às expectativas legítimas das comunidades que lutavam pela sua dignidade humana.Do ponto de vista histórico, ilustram-no as várias petições de Angolanos das diferentes regiões e organizações que,na década de 50 do século XX, eram enviadas à sede da ONU. Denunciava-se o colonialismo português e solicitava-se a aplicação de dispositivos plasmados na Carta da ONU, tais como o estatuto de protectorado, a tutela, a autodeterminação e a independência. No entanto, Portugal não era membro da Organização das Nações Unidas, quando tais petições atravessavam o Atlântico. O  Estado Novo português ocupou um lugar nessa tribuna internacional apenas em 1955, passando a partir daí a cumprir aimperativa obrigação jurídica internacional, perante o direito dos povos à autodeterminação.

Portanto, o “direito à descolonização” é um direito moral, na medida em que, afastando-se dos dogmas do positivismo jurídico, o seu transistemático fundamento é de ordem ética. A sua consagração concorre para o lançamento das bases que conduziriam à redução do antagonismo entre os “direitos do homem” e os “direitos dos povos”. No capítulo dedicado aos direitos do homem e dos povos, inserido no livro “Droit International. Bilanet Perspectives” (Direito Internacional. Balanço e Perspectivas), editado com a chancela da UNESCO, o professor senegalês, Keba Mbaye (1924-2007), recordava que a consagração formal do direito à autodeterminação e, por conseguinte, o direito à descolonização, considerados como direitos dos povos,tinha sido resultado de um virulento debate que se seguiu à Declaração Universal dos Direitos do Homemde 1948. Os representantes da antiga União Soviética deploravam uma lacuna, o silêncio relativamente aos “direitos dos povos”, tendo o seu preenchimento ocorrido em 1952, por força de uma resolução da Assembleia Geralda ONU. A solução definitiva realizar-se-ia mais tarde com aresolução 1514 da Assembleia Geral que aprovou a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Colonizados, de 14 de Dezembro de 1960.O princípio tinha tomado forma: “Todos os povos têm o direito à autodeterminação […]”.

Novos procedimentos e sanções

Logo após a aprovação da referida resolução, a questão das colónias portuguesas e a crise superveniente, a partir de 1961,impulsionaram decisões e reflexões doutrinárias, no âmbito dos trabalhos da Assembleia Geral e de órgãos especializados, nomeadamente, a Comissão de Descolonização e o Conselho de Segurança que realizou quatro debates e aprovou três resoluções. A primeira resolução foi dedicada a Angola, as restantes a outras colónias portuguesas.

Portugal mantinha uma estranha indiferença. Os seus representantes não manifestavam qualquer interesse pelo acatamento das disposições da Carta da ONU e muito menos pela aplicação das resoluções da Assembleia Geral. Tinham sido tomadas iniciativas de conciliação e bons ofícios para as quais se solicitavam os préstimos do Secretário-geral da ONU, o birmanês U Thant (1899-1974). Dois meses decorridos sobre a data da constituição da Organização da Unidade Africana, o Conselho de Segurança tinha convocado conversações entre o representante de Portugal e representantes do Grupo Africano. Estes, além disso, tinham formulado um convite ao Secretário-geral da ONU para visitar Angola e Moçambique. Não se registaram sucessos. A causa do fracasso dessa tentativa de aproximação e de negociações residia na interpretação do princípio da auto determinação. É evidente que no centro das atenções estava a aplicação da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Colonizados.

Enquanto sujeito passivo da obrigação jurídica de descolonizar os povos e os territórios que ocupava sob a designação de “províncias ultramarinas”, Portugal sofreria as consequências políticas. As resoluções recomendavam sanções que exigiam a proibição de assistência militar de outros Estados para impedir a contínua repressão “contra os povos dependentes”, permitindo “que estes povos exerçam pacífica e livremente o seu direito à independência completa, e a integridade do seu território nacional seja respeitada”.

Filosofia da descolonização

O jurista francês Michel Virally (1922-1989) foi, durante muito tempo, um dos eminentes académicos europeus que acompanhava e compreendia o rumo dos debates sobre o direito à descolonização. A fonte dos debates eramas soluções propostas para o problema do direito à autodeterminação dos povos colonizados. Em 1963, Michel Virally publicou um artigo na revista “Annuaire Français de Droit International” (Anuário Francês do Direito Internacional)com o qual reconhecia a emergência de “uma filosofia da descolonização”. A hermenêutica do artigo 73º da Carta da ONU era uma fonte fecunda de debates jurídicos e filosóficos. Ainda hoje multiplicam-se as narrativas sobre a evolução desses debates.

A abordagem da filosofia anti-colonial, produzida durante as décadas de 60 e 70 do século XX pelas organizações políticas e movimentos de libertação nacional dos actuais PALOP, sugere a sistematização das posições doutrinárias defendidas, bem como das propostas do principal inimigo comum. Ahermenêutica do referido artigo 73º da Carta da ONU e da resolução 1541 da Assembleia Geral teve eficácia imediata para os chamados “territórios do ultramar” de Portugal. Admitia-se que tenha dado origem a três teorias filosóficas sobre o valor da autodeterminação: 1) Perspectiva instrumentalista, segundo a qual a descolonização deve conduzir ao surgimento de um novo Estado independente e soberano, o que  se revelava moralmente necessário em virtude de os povos terem sido, por muito tempo, oprimidos pelo regime colonial; 2) Perspectiva de associação democrática, com a qual seinvoca a necessidade moral da descolonização, apontando para a possibilidade de reconhecimento do exercício do direito à autodeterminação dos povos colonizados, através da representação democrática no quadro institucional do Estado da potência colonial, isto é, a constituição de  partidos políticos, realização de eleições, garantindo-se assim direitos iguais para a escolha de representantes e acesso a cargos públicos; 3) Perspectiva de livre integração, segundo a qual a descolonização tinha justificação moral, por se tratar de povos incapazes de formar instituições políticas, devendo as populações do território não-autónomo exprimir essa vontade “plenamente conscientes da alteração do seu estatuto, através de uma consulta baseada em métodos democráticos”. 

Se procedermos ao inventário das posições de Portugal e as confrontarmos com as três teorias filosóficas em matéria de interpretação do princípio da autodeterminação dos povos, seremos solicitados a analisar o discurso proferido por Salazar em 12 de Agosto de 1963. Assim, concluiremos que a posição política de Salazar, no dissenso perante a ONU, consiste no carácter eclético das soluções que o inscrevem na lista dos que negavam o princípio da autodeterminação e defendiam as perspectivas de associação democrática e de livre integração. Salazar pretendia obter o consentimento dos povos colonizados através do voto. O conceito português de autodeterminação estava longe de corresponder a uma boa interpretação para as exigências do momento.

Conclusão

A entrada em cena do direito dos povos no Direito Internacional, tal como dizia Michel Virally “constituiu, incontestavelmente, um dos factos mais significativos da evolução do direito internacional depois de 1945”. Seguiram-se outros instrumentos, designadamente, a Declaração relativa aos Princípios do Direito Internacional sobre as Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados, de 24 de Outubro de 1970; o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ambos de 16 de Dezembro de 1966. A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos cujo início de vigência ocorre a partir de 1986, representa uma das  mais altas expressões do Direito Internacional Africano. Keba Mbaye sublinha a consagração dos direitos dos povos à sua existência, direito à paz, direito à igualdade, o direito à autodeterminação e o direito à livre disposição das suas riquezas e recursos naturais.

Portanto, não parece despropositado reiterar esta ideia. O estudo da história da filosofia dos direitos do homem e dos povos não pode prescindir dos contributos da filosofia anti-colonial dos PALOP, especialmente quando se tratar da filosofia do direito à autodeterminação dos povos e da filosofia da descolonização.

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

p.s,: publicado originalmente em: 12/03/2023 no Jornal de Angola

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *