Filosofar é preencher o vazio que só com um tipo de reflexão podemos conseguir
ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

Um leitor dos meus artigos no Jornal Opção, formado em ciências naturais, levantou por meio de uma mensagem eletrônica algumas questões. Entre outras coisas, ele dizia:
(…) sempre considerei as ciências humanas, e especialmente a filosofia, como uma área menor do conhecimento humano justamente por ser incapaz de produzir respostas a problemas reais ou de gerar consensos sobre questões quaisquer.
Devemos lembrar este fato histórico: muitas ciências naturais devem seu início à filosofia. Escolhamos uma das mais prestigiosas: a astronomia. Um dos problemas mais antigos — e mais difíceis — da cosmologia, um ramo da astronomia, é precisamente a pergunta pela origem de tudo. Essa pergunta é, com efeito, a primeira pergunta filosófica da qual temos registro no mundo ocidental: qual é a natureza de todas as coisas. Pergunta feita por quem é considerado o primeiro filósofo (Tales), que preocupou os filósofos gregos durante vários séculos (Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito, Leucipo) e ainda nos preocupa. Percebamos que a afirmação “incapaz de produzir respostas a problemas reais” esconde uma dificuldade e um desafio. Porque, que devemos considerar como “problema real”? Talvez, para o homem da rua, a pergunta “o que é um buraco negro” não seja um “problema real”. Nem, por esse motivo, perguntas como “qual é a natureza dos números” ou “dadas as várias geometrias, qual delas é a verdadeira?” Em que sentido a pergunta “qual é a origem da vida” é um “problema real”? Devemos entender “problema real” no sentido radicalmente pragmático, aquele que quer soluções para questões do dia-a-dia e que interessam às pessoas comuns? Se for assim, a grande maioria das perguntas científicas, e mesmo as mais intrigantes e difíceis, não seriam problemas reais.
Poucos anos atrás, em 2005, se cumpriu um século do famoso trabalho de Einstein, aquele que revolucionou a física e a ciência contemporânea. Quem preferir confiar em Einstein e não em mim, fará muito bem, e faria melhor, todavia, se lesse o que o grande físico declarou que os pensadores que influenciaram decisivamente para sua formulação da Teoria da Relatividade foram três filósofos: Hume, Berkeley e Kant. Se a filosofia não tivesse nada a contribuir, como poderia tê-lo feito no caso de Einstein? Outros filósofos modernos, como Locke e Rousseau, são considerados, também, precursores, no seu caso, de outra ciência importante: a antropologia. E, chegando mais próximos dos nossos dias, Charles Sanders Peirce, filósofo e lógico, é considerado o pai da semiótica.
Pensemos detidamente e respondamos: qual é uma das áreas que teve mais influência no nosso dia a dia nos últimos anos? A informática, sem dúvida, está entre o que mais afetou nosso comportamento diário. Ora, por trás da informática está, precisamente, o que é uma das mais tradicionais e antigas das disciplinas filosóficas: a lógica. E, como o comprovou um filósofo e matemático, Frege, a própria matemática está fundada na lógica. A matemática, isto é, a ciência que dá fundamento e possibilita todas as outras ciências naturais! Pois bem, ela própria, funda-se numa disciplina filosófica.
As curtas considerações que acabo de fazer são suficientes para que o leitor perceba quanto devemos à filosofia e quanto devem a ela as mais díspares das disciplinas científicas — se formos acreditar o que cientistas como o próprio Einstein declararam. (Antes de passar ao próximo ponto, uma lembrança: nem a ciência, nem a filosofia estão preocupadas ou procuram o consenso, buscam, isto sim, a verdade. Pois consenso houve sobre a Terra ser plana e imóvel, o que cientistas e filósofos, como Copérnico, negavam.)
Imediatamente, o leitor acrescentou na sua mensagem:
Mais especificamente: se a filosofia não gera respostas e nem consensos, qual a sua função? No artigo da última edição, Palácios trata dessa questão e tece considerações sobre a sua concepção de filosofia, comparando-a à formulada por outros filósofos (Popper e Wittgenstein). O autor defende que a filosofia trata de problemas filosóficos e da própria filosofia, concluindo como uma das características (no que considerei um aparente paradoxo) a busca de soluções para problemas que não podem ser resolvidos: “Nossas reflexões filosóficas estão para preencher um vazio que nada pode preencher (…)”.
Como disse, alguma resposta a filosofia deu a Einstein, tanto que ele reconhece a contribuição de filósofos no desenvolvimento de suas reflexões na física. Mas passo agora a refletir sobre a filosofia em si. Tenho dito, e nessa parte o leitor é fiel ao meu pensamento, que uma característica da filosofia é a busca de soluções para problemas que não podem ser resolvidos. Isso é correto, mas incompleto. A filosofia é a busca de soluções para problemas que não podem ser resolvidos — e o seguinte acréscimo é fundamental — com o corpus de conhecimentos que temos numa determinada época. Desse modo, sempre que não podemos deitar mão de todos nossos conhecimentos adquiridos nas diversas áreas do pensamento e atividade humanos, a reflexão que começamos a desenvolver para resolver esse problema específico é uma reflexão própria e tipicamente filosófica. Ocorre que — o que temos visto na história do pensamento —, muitas vezes, as soluções assim conseguidas abrem uma esfera nova de problemas que passam a ser pensados como pertencentes a uma determinada área. É assim que nascem as ciências particulares, como foi o caso da antropologia e da semiótica, que nasceram como preocupações e problemas filosóficos e passaram a se consolidar como áreas e disciplinas autônomas da pesquisa científica.
O que em várias oportunidades tenho dito, e acabei de dizer agora mesmo, é que a filosofia “é a busca de soluções para problemas que não podem ser resolvidos com os conhecimentos já adquiridos sobre o mundo, o universo, o homem etc.” O leitor tem toda a razão, o que escrevi só é um paradoxo aparente na medida em que, ao filosofar, queremos preencher o vazio que nada do que já sabemos pode preencher. É justamente para preencher o vazio que nem a ciência, nem as artes, nem a religião preenchem que filosofamos: queremos preencher filosoficamente o que não pode ser preenchido de outro modo, isto é, fora da filosofia.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |
O espanto, o pensamento, a reflexão formam um conjunto que está contido na necessidade da busca ou encontro de respostas que permitam a concordância e satisfação do que causa o espanto ou a insatisfação. Já ouvi, não sei onde, que mais importante que é resposta é a pergunta.