0

A filosofia e seu progresso

Duas razões para o avanço filosófico: a crítica do passado, a valorização de si mesmo

Gonçalo Armijos Palácios*

            Já insisti na tese de que a filosofia não é una, isto é, não é um conjunto unitário e coerente de teses. Estas reflexões sobre a leitura entre os filósofos, entre outras coisas, pretendem mostrar isso. Os filósofos escrevem para resolver velhos problemas de outra maneira, para criticar velhas soluções, para denunciar como pseudoproblemas aqueles que preocupavam seus antecessores, para entender o presente e resolver seus desafios etc. Quando não fazem isso, introduzem novas maneiras de ver as coisas e terminam, em muitos casos, revolucionando a concepção mesma do que é e deve ser a filosofia. É desse modo que a filosofia avança, como ela progride. Não, certamente, pelo suposto acúmulo de teses e descobertas que passem a ser consideradas incontestáveis. Mas pelo afastamento de antigos problemas, de velhas maneiras de ver o mundo, de obsoletas metodologias.

            Tal afastamento, no entanto, não ocorre de maneira pacífica. Os críticos da tradição, é claro, nunca são bem-vindos. Os grandes filósofos, no entanto, têm feito isso. Criticaram obstinadamente a tradição para chamar a atenção sobre erros do passado e abrir as portas do futuro. Criticar os erros do passado, por outro lado, não significa desconhecer suas contribuições. Pois o estudo do passado, da tradição, não pode ser considerado uma dedicação estéril. A crítica positiva da tradição não quer, nem deve, desconhecer ou destruir o passado, mas construir a partir dele. Não há avanço sem a experiência do passado, sem as lições da tradição. Aprendemos do passado pelos seus erros e seus acertos. É conhecida aquela máxima segundo a qual o desconhecimento da história nos pode levar a cometer os erros do passado. Vejamos, então, o passado e a tradição com olhos críticos. E ter um olhar crítico não quer dizer, como muitos pensam, partir de um preconceito destrutivo. Significa, pelo contrário, saber enxergar tanto limitações como contribuições. O perigo, no entanto, é só perceber estas últimas, o que leva a muitos a enaltecer demais o legado da tradição. Isso não ocorre sem que, ao mesmo tempo, se pague o preço de desprezar o que temos no presente.

            Ocorre este estranho fenômeno: como cegos, não enxergamos os valores do presente deslumbrados pelas conquistas do passado. A filosofia, não obstante, é a prova incontestável de como não podemos avançar sem mostrar as limitações de antigas teorias. Esse é, como diz Bacon, um signo que nos mostra para onde é que devemos dirigir nossas preocupações. Vejamos: “Merece ainda ser considerada como signo a grande e perpétua disparidade de ideias que tem reinado entre os filósofos, e a própria variedade de escolas de filosofia.” (Aforismo LXXVI)

            Se quisermos entender o progresso em filosofia, o caso de Bacon é paradigmático. Para começar, note-se o título de sua obra: Novum Organum, isto é, novo instrumento, novo método. Claramente, escrito num espírito antiaristotélico e, especificamente, contra o Organon de Aristóteles. Diz no mesmo aforismo:

Em tempo mais recente, as dissenções e as disparidades de pontos de vista em torno dos próprios princípios de filosofia e das filosofias parece terem cessado; mas restam ainda inumeráveis problemas e controvérsias nas várias partes da filosofia, donde resulta claro que não há nada de certo e de rigoroso nem nas doutrinas filosóficas nem nos métodos de demonstração. (Loc. cit.)

Essas disparidades e dissenções – que poucos querem ver – atingem a filosofia na sua base: a própria concepção do que seja a filosofia costuma estar em constante disputa. O que ela seja, cada escola ou corrente filosófica define de um modo.

            O problema é que em torno dos grandes pensadores se reúnem aqueles que se gabam de seu terrível nome: os especialistas. Aqueles que se apresentam como depositários e herdeiros privilegiados do legado deste ou daquele grande pensador. Estes especialistas criam verdadeiras escolas de papagaios nas quais se proíbem dissenções e se obriga a defender a versão oficial das teses do grande mestre. Essa é uma das características do academicismo que tolhe qualquer iniciativa crítica, de se pensar de forma diferente ou de se propor coisas novas. Na época de Bacon, uma daquelas grandes e inquestionáveis autoridades era Aristóteles. Por isso, Bacon está coberto de razão quando afirma:

(…) a grande massa dos que convêm na aprovação de Aristóteles é escrava do prejuízo e da autoridade de outros, a tal ponto que se deveria falar, mais que de consenso, de zelo de sequazes e de espírito de associação. (Aforismo LXXVII)

            Deve ficar claro que uma coisa é olhar a tradição criticamente, outra, muito diferente, desconhecer a importância do seu legado. Fazer isso último seria dar mostras de ignorância e tolice. Pelo contrário, trata-se de permitir o avanço do pensamento pelo estímulo de uma atitude crítica do que temos recebido. E por atitude crítica devemos entender aquela que se esforça tanto em avaliar as contribuições quanto suas limitações. A leitura dos filósofos deve ser precisamente essa, aquela que os grandes filósofos tiveram a respeito dos seus antecessores: afirmaram sua grandiosidade, mas não ao preço da aniquilação de si próprios.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *