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A filosofia sem intermediários

Um abismo separa o lugar-comum de comentadores dos universos explorados pelos filósofos

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

Os dois textos de Wittgenstein que fizeram época, o Tractatus Logico-Philosophicus e as Investigações Filosóficas, têm em comum algo que não pode passar despercebido. As referências a outros filósofos são praticamente inexistentes. As Investigações começam com uma citação de Agostinho sobre a linguagem, mas não se discute, propriamente, a teoria desse pensador — ou de nenhum outro. Nas duas obras há uma atitude crítica respeito da filosofia tradicional — ou de concepções tradicionais — sem se mencionar este ou aquele filósofo. Tanto numa quanto na outra se discutem concepções e se propõem teses.
No caso das Investigações, pouquíssimas pessoas são citadas. O que está em jogo é uma outra concepção da linguagem e da filosofia. Nenhum desses textos mostra — ou pretende mostrar — erudição. No seu lugar vemos algo diferente: problematização. Vemos, isto é, que o filósofo foi motivado por algum problema que o levou a buscar soluções, soluções que implicavam conclusões que, por sua vez, determinaram a crítica e o abandono de certas teses filosóficas consideradas, em alguns casos, completamente equivocadas.
Lamentavelmente, confunde-se o trabalho filosófico com exibicionismo intelectual. Não pense o leitor que filosofa quem tiver lido toda a história da filosofia. Isso, com certeza, ninguém poderia ter feito ou fez. E, mesmo que fosse possível, essa leitura só poderia ser realizada por quem não é filósofo. Pois o filósofo não é aquele que fica a totalidade do tempo lendo. Quem lesse dessa forma não teria tempo de pensar. Pois só podemos ler aquilo que nos interessa, e é o que nos interessa que nos faz pensar. Não aquilo que unicamente nos informa. Quem achar que só estará em condições de filosofar depois de ter passado por toda a história da filosofia, engana-se redondamente. Na academia, lamentavelmente, encontramos pessoas que gostam de passar-se por filósofos apresentando inúmeras citações e intermináveis referencias bibliográficas. É verdade que pretensos textos filosóficos não são outra coisa que uma saraivada de citações e referências. Mas neles não encontramos um problema a ser resolvido. Não, neles vê-se claramente o desejo de ostentação do autor, de exibir uma quantidade interminável de leituras que, no fundo, não levam a nada e não permitem que o leitor perceba a motivação, o problema e a eventual solução dada pelo autor.
Comentar, sem discutir, interpretar, sem problematizar, tampouco é fazer filosofia. Há comentários de filósofos clássicos que, eles próprios, são clássicos. Mas não são obras clássicas da filosofia, são clássicos do comentário filosófico e podem ajudar a entender a teoria, o alcance e as limitações de uma grande obra filosófica ou de um grande autor. Um desses grandes comentadores é, por exemplo, Norman Kemp Smith, que escreveu dois clássicos, um sobre a Crítica da Razão Pura, de Kant, e outro sobre a obra de Hume. Esses textos esclarecem e ajudam a compreender certos textos e determinados autores, mas eles próprios não são obras filosóficas. Biografias também podem ser excelentes introduções para a compreensão de certos filósofos. Uma delas é, por exemplo, Kant: vida e doutrina, de Ernst Cassirer.
Quando um filósofo desenvolve uma tese e se refere às teses de outro filósofo, geralmente o faz para apontar semelhanças, diferenças e para refutá-lo ou criticá-lo, poucas vezes para louvá-lo sem mais. Como vimos no início desta série, Bacon não mede palavras para criticar ou louvar os gregos, resgatando os sofistas e pré-socráticos e atacando duramente Platão e Aristóteles.
Tanto o Tractatus como as Investigações, mesmo seguindo caminhos opostos, são isso: procura, investigação, defesa de teses originais e crítica do que fora consagrado pela filosofia tradicional. Quem lê comentadores assemelha-se a aquele que escuta estórias de viagens fantásticas contadas por alguém que, ele próprio, jamais teve a coragem de se aventurar por si mesmo e conhece o mundo só de ouvir dizer.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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