Por: Severino Ngoenha e Giverage do Amaral
O desconfinamento ou o retorno à normalidade já começou. Doravante a nossa indumentária, pelo menos nos próximos tempos, vai ser acrescida de um novo acessório: a máscara. Ela sempre existiu, acompanha sempre médicos, enfermeiros e pessoal sanitário nas suas actividades profissionais. Nas nossas tradições, sobretudo de Mapiko (Maconde), acompanham os ritos de iniciação. Também serviram a momentos de tortura nos famosos museus de Amsterdão ou no trocadilho entre irmãos que levou Luís 14 ao poder.
Mas, sem dúvida, as máscaras mais famosas são as do carnaval que, essas, diferenciam-se entre as pobres máscaras do carnaval do Rio de Janeiro e sobretudo da Bahia, das ricas máscaras do carnaval aristocrático de Veneza. Algumas empresas de moda francesa já começaram a fazer máscaras de marca, porque elas não podem ser politicamente corretas se só significarem distanciamento social e não também as diferenciações e as distinções sociais. Assim teremos as máscaras de Yve Saint Laurent, Armani, Gucci …
Para aqueles que pensavam que o corona vírus veio trazer igualdade e que doravante estamos todos no mesmo barco a realidade está a mostrar que estamos todos no mesmo mar, mas uns viajando em iates e outros a nadar ou mesmo a naufragar. Isso recorda o famoso filme de Spilberg, Amistad, em que um navio negreiro, cheio de mercadoria, jovens homens e mulheres amarrados, cruza com um navio de luxo onde um grupo de artistas fazia um concerto de música clássica – talvez estivessem mesmo a tocar Ode an die Freude (ode à alegria) de Beethoven…
Do ponto de vista filosófico, o princípio de que os homens são iguais porque todos susceptíveis de ser atingidos por uma morte violenta, defendida por Hobbes para legitimar a criação do Estado leviatã, não é defensável. A biopolítica de Michel Foucault colhe a relação antinómica entre a vida e a morte na gestão do poder, mas também uma diferença de fundo, entre uma política feita em nome da vida e um outra que faz da morte de alguns a condição da vida de outros, como fez o nazismo e como faz o ultraliberalismo de uma maneira muito sofisticada (necropolítica, Achile Mbembe).
Para os frequentadores da filosofia, a máscara mais famosa, deveria ser aquela que o Papa Urbano VIII emprestou a Galileu, porque significou uma verdadeira separação de águas; na concepção do mundo, do lugar do homem no cosmos e do espaço reservado a Deus na sociedade dos homens.
Quando Galileu começou a defender as suas teses sobre o heliocentrismo, o Papa Urbano VIII convidou-o para uma conversa privada, e teve o cuidado de lhe dizer passando-lhe a máscara – estava-se no período de carnaval: o que nós dissermos mascarados não terá nenhuma implicação judiciária, mas quando eu tirar esta máscara a minha voz será a potestática autoridade da Igreja. E, numa ameaça apenas velada, recordou-lhe a sorte de Giordano Bruno, queimado vivo no Campo di fiori, apenas por ter defendido o poligenismo. Hoje, existe em Maputo um restaurante chamado campo de fiori, e por coincidência encontra-se atrás da embaixada Americana (o único detentor “legítimo” do fogo que pode queimar).
A pergunta que o Papa Urbano VIII, mascarado, fez ao também mascarado Galileu foi: o que que te permite pensar que com a tua cabeça de homem podes chegar a verdades mais profundas do que a palavra revelada? O Papa fazia referência a um versículo, vetero testamentário (Josué 10, 12-21), em que os Judeus mandaram parar o Sol para vencer uma batalha contra os filisteus. O que estava em causa na pergunta do Pontífice não era, unicamente, a questão exegética ou hermenêutica da interpretação dos textos bíblicos, mas o lugar de Deus na história dos homens, da qual derivavam tanto a moral, quanto o direito, que regiam as relações políticas e sociais no mundo de então.
Galileu entendendo a dimensão da questão respondeu com duas frases célebres: a primeira foi a famosa epure si muove vulgarizada por Berthold Brecht na famosa peça Galileu Galilei, e a segunda foi quid dixit Cartesium? . Na incapacidade de responder filosoficamente à questão do pontífice, Galileu apela ao grande filósofo de então, René Descartes.
Este não foge à solicitação de Galileu e à pergunta do Papa, e começa as Meditações Metafísicas respondendo: o Deus que não se engana e não nos pode enganar, deu-nos uma inteligência que nos permite desvendar os mistérios de terra e de todo o criado. É o que a literatura filosófica chamou de Deus ex Máquina – convocar Deus como argumento de autoridade e depois depositá-lo nas prateleiras.
Estes três homens formam uma tríade curiosa e complexa. Galileu, dando continuidade às experiencias e estudos da astronomia e astrologia de Copérnico e utilizando o telescópio de Kepler, meteu o Sol no centro do universo; Descartes muito rapidamente tirou o Sol do centro e meteu o homem – passou-se assim, em muito pouco tempo, do heliocentrismo ao antropocentrismo. Outra deslocação fundamental reside nos métodos e instrumentos. A ciência de Galileu consiste em observar astrologicamente o mundo. O ‘cogito’ de Descartes passa das res cogitans a res extensa, fazendo a aplicação das categorias matemáticas à realidade física. Para isso usa a téchnĕ (quer dizer, prolongação de sentidos) para manipular o mundo e obrigá-lo a responder às suas exigências.
Desde então o racionalismo cartesiano, no centro do universo em substituição ao Sol, prolongou os olhos com satélites e drones, os pés em aviões e aeronaves espaciais, e com as mãos nos laboratórios disseca cadáveres, manipula geneticamente as plantas e animais, trafica os órgãos humanos. Com os olhos invade, perscruta e controla tudo, e hoje, aproveitando-se até da crise do Corona vírus, controla-nos através de celulares, computadores e fez uma aliança com os big data para que nenhum homem fuja ao controlo biopolítico do seu poder; tudo isso em função do seu olfacto sempre mais apurado na busca ultra liberal do proveito.
Por fim, esse demiurgo desnaturou o mundo e com as próteses e as nano tecnologias, entrou na era pós humana.
Das inúmeras revoluções que homem fez a mais importante foi sem dúvida a descoberta do fogo, com a qual transformou radicalmente a sua vida. cozinhando os alimentos, aquecendo as casas, aumentou a capacidade de raciocínio e da memória; migrar da olaria para a fundição de metais, facilitou a solidificação das comunidades e com isso, a transmissão das tradições (tradere). Porém se o fogo traz desenvolvimento, riqueza e prosperidade, ele é proibido às crianças porque também pode queimar, aliás é por isso que todas as grandes cidades do mundo estão cheias de bombeiros.
As últimas grandes revoluções são cibernéticas, biotecnológicas – ligadas a manipulação dos animais e das plantas –, nano tecnológicas, numéricas (…). Mas, como o fogo, elas comportam perigos climáticos, da biodiversidade, da manipulação dos processos democráticos (Cambridge Analytica), do retorno a uma polizei wissenschaft, com os bigdatas e até com drones.
O que é que tem a 3ª personagem desta tríade a ver com tudo isto? Para muita gente o nome de Urbano VIII é simplesmente ligado à condenação de Galileu, porém, ele está também ligado à criação do sistema universitário moderno, vinculada com a chamada descoberta da América, que segundo Enrique Dussel, dá forma ao conceito filosófico de modernidade.
A universidade moderna não é a de Bolonha medieval, hoje retomada e hossanada. Ela nasce para resistir e contrapor-se, à racialização monogenista (Giordano Bruno), ao antropocentrismo de Descartes e ao parqueamento de Deus; como busca de uma garantia do direito e da moral, o que só pode existir num mundo encantado, em que o “homo hereticus” descobre-se homem, descobrindo o céu – Sol, estrelas, lua – que esta para além dele (G.B. Vico).
“Numa ordem superior das coisas, nós somos uma espécie que não conta. O corona vírus nos recorda a nossa contingência e a insignificância última da nossa existência. Por quanto grande sejam os monumentos espirituais erigidos pela humanidade, uma contingência natural estúpida, como um vírus ou um asteróide, pode a aniquilar”( Slavoj Žižek).
É como dizer a Descartes, essa coisa insignificante que quiseste meter no centro do tudo, apesar dos edifícios históricos que construiu, academias, avanço técnico e científico, continua insignificante. Reconhecer a própria insignificância significa também reconhecer a necessidade de ter uma vida em consonância com aquilo que se é. O problema de todo o cartesianismo e dos seus avatares, não é o logos ou o cogito, mas a pretensão racionalista de elevar o homem a demiurgo e, protagoricamente, transformá-lo na medida de todas as coisas.
A preocupação de Urbano VIII não era de desqualificar o homem (De miserie humane vitae), mas fazê-lo entender que era tanto mais digno quanto mais reconhecia os seus limites e, portanto, os limites da sua própria acção: aquilo que o vocabulário contemporâneo chama fazer ciência com consciência.
A nossa academia deveria, em primeiro lugar, ter consciência de ter necessidade de, galelianamente, fazer mais ciência, mas com a consciência dos limites que todos os cartesianismos comportam e, por isso mesmo, com a prudência que Urbano VIII preconizava.
Mas scientia vem de sciere, quer dizer introspecção, olhar para dentro de si, um si colectivo, relacionado com a nossa comunidade existencial, e ser proposta de solução de resposta aos seus problemas.
Fazemos ciência quando prolongamos os nossos sentidos através da técnica, trazendo artefactos que ajudam a aligeirar o fardo da existência, que facilitam a nossa interacção com os outros e com o mundo. Porém, a ciência exige uma ética e a consciência dos limites do homem, do seu lugar no mundo e da existência ao nosso lado de outros seres (Heidegger).
Por isso não existe uma ciência de Galileu, uma de Descartes e outra de Urbano VIII; mas as três dimensões que os nomes deles invocam, deveriam se completar na busca da compreensão da complexidade do mundo (Edgar Morin). Complexidade essa que não pode ser apreendida por nenhum saber epistémico unilateral, mas necessita de uma maneira ecuménica de abordar o conhecimento.
As grandes pandemias mudaram profundamente as sociedade nas quais apareceram. A peste de 1300 fechou de facto o período medieval, preparando as condições para o advento da época moderna, favorecendo o nascimento dos Estados modernos, necessários para conter o risco da desagregação social. Esta pandemia é particular porque afecta todos os países e, por isso mesmo, é o primeiro evento verdadeiramente global.
Uma vez que, o seu questionamento tem a ver com a relação inter-humana, vai ser necessária uma certa dose de imunização. Não existem sociedades históricas sem uma forma de imunização. A primeira da quais é o direito.
O desconfinamento e o retorno à normalidade já começou. Mas o que é normal? o que é um retorno? existem perspectivas que não obscurecem o horizonte? A crise pós crise não sera sanitária mas económica e social.
A normalidade pós pandémica vai ser carnavalesca, de mascarados. Carnaval quer dizer “carne-vale”, fim do período da carne, início da quaresma, da austeridade: empresas falidas, aumento do desemprego, mais fome, mais miséria.
Porém, não há nenhum vírus que não encontre a sua imunidade. Em todos os momentos históricos, depois de uma grande pandemia, houve a reconstrução do mundo com novas vacinas para tornar a vida social possível, a acomodar e conviver com os desfasamentos produzidos. As crises foram também muitas vezes ocasião para os dominantes aproveitarem para organizar o mundo a seu gosto. Por exemplo, a peste bovina de 1884 enfraqueceu as nossas resistências e a ocupação colonial dos territórios africanos passou de dez a noventa por cento.
A crise actual pode também ser uma ocasião inédita, se soubermos ser ousados. É uma crise que questiona os dogmas do ultra liberalismo; a superpotência dos mercados, o livre enchangismo, a santidade da eficiência, o que convida a pensar numa sociedade respeitadora dos equilíbrios do ambiente e a altura dos problemas climáticos. Ela parece propícia à emergência de lógicas económicas alternativas, o que pode favorecer a reconstrução das economias locais, nacionais e regionais com mais força.
É nisto que consiste o desafio da ciência moçambicana e africana: participar na nova imunização, que é uma batalha cultural já em curso, uma diferente lógica económica post-pós liberal .