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A leitura popperiana de Hume

Mesmo cometendo os erros mais incompreensíveis, os filósofos têm contribuído para o avanço da ciência

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Que a filosofia se a concebe de maneiras completamente diferentes pode ser visto comparando o estilo de escrever dos diferentes filósofos. É o caso dos últimos dois pensadores de cujas leituras tenho me ocupado ultimamente, Wittgenstein e Popper (por coincidência, dois austríacos).

            O estilo do primeiro é aforismático. Escreve por meio de proposições numeradas e não se atém rigorosamente a uma argumentação temática, passando de um assunto a outro de acordo com as exigências do próprio discurso. Em textos como o Tractatus, Zettel ou Investigações Filosóficas, as menções a outros filósofos são escassas ou quase inexistentes. Já Popper prefere um estilo mais temático e mais preso ao objetivo que persegue, defender suas teses e fundamentar o melhor possível suas propostas. Precisamente, suas teses centrais costumam ser conseqüência direta das teses que critica em outros filósofos. Isso vemos em Conjecturas e refutações. Ali encontramos um conjunto de avaliações e refutações de teses e teorias de vários filósofos clássicos. O que mostra — devo insistir — que, num sentido importante, a filosofia só existe porque há uma permanente crítica da tradição. Pois se o que os filósofos tradicionais afirmaram se aceitasse sem mais, não haveria filosofia, só história da filosofia. Essa crítica e essa tentativa de refutação, contudo, são mais claras em certos filósofos do que em outros. Mas, de qualquer forma, a leitura que os verdadeiros filósofos fazem de outros filósofos e da tradição em geral é sempre crítica e criativa. Naturalmente, concordam ou discordam de algumas coisas e, a partir do que concordam e discordam, elaboram novas teorias.

            Uma das primeiras coisas que Popper faz no texto mencionado é criticar a velha teoria de que existem fontes privilegiadas do conhecimento. Popper lê a tradição que propõe essa teoria com muito receio. Com efeito, elas escondem, segundo o filósofo, atitudes autoritárias. Refere-se à autoridade dos sentidos, no caso dos empiristas, e da razão, no dos racionalistas. Penso que ele tem razão, pois se a experiência ou a razão fossem fontes últimas do conhecimento, autoridades supremas, seus falhos seriam inapeláveis. Diz Popper:

Esta falsa epistemologia, porém, tem também levado a conseqüências desastrosas. A teoria de que a verdade é manifesta — que está aí para todo mundo ver, se só se quer ver — é a base de quase todo tipo de fanatismo. Pois só a mais depravada maldade pode se negar a ver a verdade manifesta.[1]

            Popper não diz nem insinua que os autores por trás das teorias que defendem que a verdade é manifesta tenham propugnado o autoritarismo. Na verdade, como no caso de Descartes, eles muitas vezes lutaram contra o autoritarismo que pode levar ao dogmatismo e, eventualmente, ao fanatismo. O autoritarismo, paradoxalmente, tende a se instalar na academia, precisamente no lugar em que se supõe que deve prevalecer o espírito crítico e aberto a inovações. Apesar da orientação antiautoritária do seu pensamento, Aristóteles, por exemplo, era citado durante um longo período na época medieval para terminar disputas teóricas. Bastava citar qualquer passagem de alguma de suas obras como critério final, e inapelável, para se encerrar a discussão.

            Platão e Aristóteles, de fato, estão por trás da consolidação do racionalismo de Descartes e do empirismo inglês — que começa, este último, no final da época medieval e encontra em Francis Bacon seu primeiro defensor mais sistemático. Para Bacon e Descartes, por sua vez, não foi fácil se libertar das amarras da tradição que os filósofos gregos ajudaram a consolidar. Analogamente, Popper se vê na necessidade de, mais uma vez, minar as bases das correntes de pensamento que se consolidam pela influência de Bacon e Descartes e que, de modo semelhante, se converteram em verdadeiras ideologias acadêmicas e entraves ao avanço da filosofia.

            Nos cursos de filosofia, tradicionalmente, não se insiste suficientemente nesse aspecto dramático da luta dos filósofos contra a tradição e o autoritarismo acadêmico. Isso é em parte responsável pelas ideias errôneas que geralmente as pessoas têm sobre esta disciplina. Acredita-se que tudo nela é paz e harmonia. Esquece-se que Sócrates foi condenado a morte e executado por suas posições filosóficas, que Platão passou por maus bocados em Siracusa, que Aristóteles teve de sair de Atenas para que a cidade “não peque duas vezes contra a filosofia” — num eventual processo e condenação contra ele —, que, séculos depois, Giordano Bruno foi queimado, que Galileu foi processado e Thomas Morus, mais uma vez, condenado a morte e executado, todos eles por defender ideias e posições. O século 20 não deixou de ver casos de execuções, perseguições ou encarceramentos de filósofos, como, para citar apenas um, foi o caso de Gramsci, preso pelo fascismo italiano.

            Popper é um dos importantes filósofos que faz precisamente esta leitura da história da filosofia: nela defendem-se posicionamentos antagônicos e do que se trata é de descobrir a verdade, mesmo que isso signifique contrariar a tradição, ideias arraigadas e consagradas, mas falsas, e derrubar ídolos.

            Assim, na seção XIII da Introdução à obra citada, Popper, referindo-se a Bacon e aos positivistas, diz:

Eu tratarei de mostrar que esse caso é tão pouco válido como o de Bacon; que a resposta à pergunta sobre as fontes do conhecimento vai contra o empirista; e, finalmente, que a questão toda das fontes últimas — às quais devemos apelar, como deveria frente a uma corte superior ou autoridade superior — deve ser rejeitada por estar baseada num erro (p. 22).

            O empirismo moderno tem seus antecedentes na Renascença e, inclusive, em autores medievais. Guilherme de Ockham é um deles. Seu nome está associado à famosa Navalha de Ockham. Com ela, simbolicamente, o filósofo propunha cortar todas as explicações metafísicas, não observacionais, da ciência. Defendia a tese de que entidades ou essências não deveriam ser multiplicadas além do estritamente necessário. O resto devia ser cortado, como com uma navalha. Há, lembremos, uma longa e importante lista de filósofos de língua inglesa que defenderam teses empiristas: Ockham, Bacon, Locke, Hume e Berkeley. Todos eles recebem uma leitura atenta de Popper.

            Apesar de suas contribuições importantes, Popper critica dos empiristas a tese de que a ciência deve começar e se fundamentar na observação. Note-se a força das expressões de Popper no seguinte trecho:

Esta parte da minha conferência poderia ser descrita como um ataque no empirismo, como foi formulado, por exemplo, na seguinte clássica asserção de Hume: ‘Se eu pergunto por que tu acreditas em algum fato particular …, tu deves me dizer alguma razão; e essa razão deverá ser algum outro fato conectado com ele. Mas se tu não podes proceder dessa maneira, in infinitum, deves por fim terminar em algum fato (…) ou deves admitir que tua crença não tem completamente nenhum fundamento’ (…). (p. 21)

            Temos, então, este problema: deve a ciência fundamentar-se de acordo à exigência de Hume? Se o leitor pensa que sim, estará simplesmente concordando com o filósofo escocês (na eventualidade de também seguir o mesmo argumento). Caso contrário pode aceitar a posição de Popper, cuja conclusão veremos a seguir. Se não concorda com nenhuma delas, poderá propor a sua. É nesse momento que a filosofia acontece.

            A decisão, contudo, não pode ser tomada sem olhar a história. Pois, para tomá-la, devemos saber concretamente como se deu o surgimento e o avanço da ciência. Será que todas as grandes conquistas da ciência se fundamentaram da maneira exigida por Hume? A resposta é negativa. Por isso penso que a conclusão de Popper está mais próxima da verdade: “há todo tipo de fontes do conhecimento: mas nenhuma tem autoridade” (p. 24).

            Hume pode estar equivocado naquela tese. Popper também pode estar enganado em uma ou em mais de uma de suas posições. O que deve chamar nossa atenção na filosofia é que, mesmo teorias profundamente equivocadas têm contribuído de forma decisiva no progresso do conhecimento. Mais uma razão para perdermos o medo de errar e, no seu lugar, ousar.


[1] Ibid., p 8.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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