O modo não empírico do lógos é o que pertence à peculiar téchne da filosofia
ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

Entre outras coisas, nas minhas reflexões da última semana tentei mostrar por que a linguagem da filosofia se afasta da linguagem coloquial. Nossa racionalidade não se conforma com o imediato. Mas é para o imediato que ela, nossa linguagem, foi feita. Isto é, foi para resolver nossa necessidade de comunicar o que nos afeta aqui e agora, ou aqui e daqui a pouco. Há, obviamente, uma tendência imediatista na própria essência da linguagem humana. E por que não poderia ser de outro modo? Porque nossa subsistência como indivíduos, e como espécie, dependia de ela, a linguagem, ter sucesso em ser instrumento de indicar o imediato, o que era e o que podia ser, ou não ser, instantaneamente. Espécies inferiores usam cores, odores ou mesmo ruídos (chiados, grunhidos etc.) para comunicar o que precisam nesse exato momento. O resto resolve-se instintivamente.
O ser humano foi se afastando do instintivo, e, portanto, do imediato. Não simplesmente interessou-nos indicar o atual, mas o futuro imediato e, daí, o potencial e, ainda, o mais distante, o infinitamente longínquo. Isto é, não só o simples ser imediato que nos rodeava, mas o que eventualmente poderia, ou não ser. Desse modo, e pela própria capacidade da linguagem, surgem os modos não indicativos, o subjuntivo, o potencial, o real, o irreal, o imperativo. Indico o que está próximo, no tempo e no espaço com um “perigo”, “rio desbordando”, “urso atacando” etc. Isso, no entanto, pode ser comunicado entre animais com cores, odores, chiados etc. Mas só nós podemos comunicar o desejo de que as águas do rio subam, ou falar da possibilidade de o rio transbordar, ou da impossibilidade de o urso nos atacar. Só nós podemos transmitir o pensamento da impossibilidade ou viabilidade de alguma rede complexa de circunstâncias. O desenvolvimento do ser humano, do seu cérebro, mostra-se e é acompanhado pelo aperfeiçoamento da linguagem. É natural, então, que tal aperfeiçoamento a obscureça, a torne menos clara. Pois, o que é “claro”? Claro é o que nos rodeia e seja dito para indicar o que está ao alcance de nossa visão, nossa audição, nosso olfato. O que é dito para comunicar um fato imediato, um fenômeno audível ou visível, por exemplo, pode ser compreendido mesmo por uma criança que não possa ainda falar. Ela intuitivamente, instintivamente, poderá entender. O que dizemos para as crianças, note-se, é o que imediatamente lhe seria compreensível. O neném que está chorando no colo da mãe se acalma quando ela pronuncia sons acompanhados do gesto de levar sua mão para o seio que lhe será oferecido imediatamente. Isso é dito com certas palavras, numa certa entoação e frente ao campo visual da criança. Quem percebeu isso sabe que esta se acalma antes mesmo de começar a ser amamentada.
Quando, porém, ultrapassamos as esferas do imediatamente visível ou constatável, a linguagem tende a se obscurecer. Este obscurecimento é, portanto, um obscurecimento necessário.
Desse modo começam a surgir paradoxos. O que está aí para comunicar, e fazê-lo da forma mais clara possível, o faz de formas menos claras e até obscuras. Mas talvez isso seja consequência do tipo de lógica inerente ao pensamento humano e à própria realidade. Uma lógica que vai muito além da simplicidade do que é. A simplicidade do que é pode consistir em ser hoje uma tarde ensolarada. Ou nela ser uma criança. Mas essa simplicidade do que é, é aparente, pois a tarde ensolarada, subitamente, deixa de ser ensolarada e deixa de ser tarde. Assim como a criança, sem nós percebermos, deixa de ser criança. Só uma inteligência superior, como a humana, pode perceber, entender e nomear isso. Pode entender que há uma essência por trás das aparências. Que há uma essência mutável por trás das aparências fixas. Pois a calma de hoje é sinal da tormenta de amanhã e a criança de hoje é o adolescente que virá. E só nós podemos entender que há um fluir constante. E só nós, ou alguém com nossa inteligência, pode chegar a nomear a eternidade. No entanto, quem fica preso ao aparente, quem está permanentemente ancorado na experiência e nos interesses do dia-a-dia, dificilmente pensa em eternidades ou essências, em contraditoriedades ou fluíres. E ninguém, preso à experiência, poderia identificar esse fluir essencial das coisas como um lógos, isto é, como um discorrer de propriedades que ultrapassam a experiência. E, por ultrapassar a experiência e estar além de toda constatação física, um discorrer metafísico. Um discorrer metafísico de quê? De tudo. De todas as coisas. Isto é, do ser, do próprio ser. Esse ser que Heráclito viu como eterno movimento, como constante fazer-se e refazer-se. Esse discorrer essencial, dinâmico, perpassa tudo. É a racionalidade na essência de tudo. É esse o lógos heraclítico. Isto é, a racionalidade dinâmica das coisas ao qual Heráclito chamou de lógos. Lógos que, na sua essência, era dínamis. Quem olha as coisas na sua aparência imediata jamais suspeitaria da existência desse lógos e dessa dínamis. Lógos e dínamis que estão em todas as coisas, que são inerentes a tudo, mas que não o parecem. A linguagem para dizer o que foi dito, no entanto, não pode ser a do dia-a-dia, tem que ser uma outra linguagem, uma que tenha atingido um grau suficiente de sofisticação e de profundidade. Uma linguagem que produza sua téchne, a téchne filosófica exprimida pelo seu próprio lógos e a ele adequada. Um vocabulário alheio ao do senso comum e do homem comum, é esse o lógos e essa a téchne próprios da filosofia.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |