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A maiêutica socrática II: A ironia de Sócrates

Até que ponto Sócrates sabia o que dizia não saber e em que medida sua atitude é irônica são questões que só o prazer da leitura dos diálogos platônicos pode esclarecer

Gonçalo Armijos Palácios

Não podemos ter uma idéia clara do que é a maiêutica socrática sem entender o papel que a ironia cumpre dentro dessa poderosa técnica argumentativa. Pensava começar este artigo tratando diretamente do assunto, mas imaginei que o leitor daria uma olhada no nosso bom e conhecido Aurélio. Para esse dicionário, “ironia” é um “Modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio ou com intenção depreciativa e sarcástica em relação a outrem”. Além dessa explicação geral do termo, encontramos, logo depois, “Ironia socrática”. Aqui, o Aurélio diz: “Modo de interrogar pelo qual Sócrates levava o interlocutor ao reconhecimento de sua própria ignorância”. Isto último, de fato, é o que Sócrates pretendia fazer, mas se realmente conseguia que o interlocutor reconhecesse sua ignorância… bem, essa é outra história.

O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, diz sobre o mesmo termo: “expressão que consiste em dar a entender o contrário do que se quer dizer”. No dicionário de grego clássico, do padre Isidro Pereira, lemos que “ironia” significa “ação de perguntar, fingindo ignorar para rir-se de outros”. Já Henrique Murachco, em Língua Grega (vol. II), diz simplesmente que “ironia” é “dissimulação”. O excelente The American Heritage Dictionary coincide com o nosso Aurélio e afirma que “ironia” tem, entre outros, os seguintes significados: “O uso de palavras para comunicar o oposto do seu sentido literal”, e “Ignorância fingida, como no caso do ensino socrático”. Meu velho e querido Diccionario de Filosofía, de José Ferrater Mora, afirma: “O verbo grego eirôneúmai significa ‘dissimular que se ignora algo’. Aquele que pratica a ironia… diz menos do que pensa, geralmente com o fim de desatar a língua de um antagonista”.

Temos, em todas essas explicações, uma idéia aproximada do que era a ironia socrática. Algumas daquelas definições podem aplicar-se ao que Sócrates fazia, outras não. Num sentido, Sócrates fingia que não sabia, noutro sentido, ele realmente não sabia. Com certeza não fingia ignorar para rir-se dos outros nem era um dissimulado.

Como já disse, admiro Sócrates porque, apesar de não ter defendido nenhuma teoria — acredito o testemunho de Platão nesse sentido —, conseguiu pôr as bases da dialética além de fornecer um método didático formidável. Mas não só isso: ele foi o exemplo de quem soube viver — e morrer — de acordo a suas próprias convicções.

Por tais convicções, como sabemos, Sócrates foi acusado de impiedade e corrupção, julgado, condenado e executado. Para termos uma idéia mais exata do que ele fez, vejamos o que aconteceu antes, durante e depois do processo que o levou a beber o veneno que poria fim a seus dias. Platão, o autor dos diálogos em que Sócrates aparece como personagem central, escreve os diálogos Eutifron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon, como uma homenagem ao seu mestre e, nos dois primeiros, aproveita a oportunidade para mostrar que tipo de pessoas se indispuseram contra Sócrates e por que o fizeram.

Comecemos pelo que teria acontecido momento antes do julgamento, como está relatado no diálogo Eutífron. Aguardando ser julgado, Sócrates é visto por Eutífron, um jovem ateniense que, passando por aí, pergunta sobre o motivo da presença do filósofo naquele lugar. Sócrates responde que foi processado por Meleto sob as acusações de corromper os jovens e de irreligiosidade.

Para entender a seqüência do diálogo, lembremos o tipo de crenças religiosas que os gregos da época tinham — crenças fielmente retratadas nas obras de Homero e Hesíodo. Sócrates não foi o primeiro filósofo que não podia, sem mais, aceitar os episódios que podemos encontrar naquelas obras, especialmente quando detalham o tipo de seres que os deuses gregos supostamente eram. Xenófanes, inconformado e muito antes de Sócrates, tinha escrito: “Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo que entre os homens merece repulsa e censura: roubo, adultério e fraude mútua”. Aqueles deuses, efetivamente, faziam isso e muito mais: devoravam-se, feriam-se, acorrentavam-se etc. Como muitos gregos, Sócrates não podia aceitar sem mais em tais histórias e isso manifestava quando discutia com os outros. Além de não acreditar no tipo de eventos detalhados nas obras dos poetas, Sócrates afirmava que, frente a um dilema, ouvia uma voz, a voz de uma divindade menor, um “daimon”, que o alertava sobre o que devia fazer. A voz, ele conta, nunca o encorajou a fazer nada de errado, muito pelo contrário, ele, seguindo seus conselhos, jamais errou. Ademais, no lugar do costumeiro “por Zeus!”, Sócrates tinha o hábito de exclamar “pelo Cão!”. Obviamente, hoje, não deixaria de causar espanto quem, em vez de um “Pela Nossa Senhora!”, dissesse algo como “Pela Cadela!”, ou algo assim. Pois bem, somando esse tipo de atitudes às críticas à imagem dos deuses difundida pelas obras dos mencionados poetas, temos configurada uma situação de aparente — ou real — desrespeito pelos valores religiosos oficiais e a conseqüente influência negativa nos jovens que porventura escutassem e acompanhassem Sócrates.

Ouvindo a resposta sobre a acusação contra o filósofo, o jovem Eutífron, aludindo ao célebre daimon de Sócrates e às reações hostis provocadas por isso, diz: “Acontece a mim mesmo, quando falo de temas religiosos em público e predigo o que vai acontecer, que riam de minhas afirmações tomando-me por louco. E, entretanto, nada há no que digo que não se torne verdadeiro, mas vêem com maus olhos a homens como nós”. [Este e os próximos grifos são meus] Perceba-se, Eutífron afirma ver o futuro e, de passo, se iguala a Sócrates. Este, sem perder tempo, mostra que se fosse só risos que sua atitude tivesse provocado, não teria havido nenhum problema, já que o que estava em jogo era algo muito mais sério. Vejam, aqui, um exemplo da sua ironia: “se quisessem apenas rir de mim, como dizes que fazem contigo, não me desagradaria chegar até o tribunal… Mas, se levam a coisa a sério, não fica claro o que possa acontecer, exceto para vós, adivinhos”! Mas o “adivinho” Eutífron não só não percebe a ironia como reconhece, imediatamente, que não o é, pois diz não saber o que vai acontecer quando responde: “Mas, depois de tudo isso, talvez nada aconteça…” Perceba-se, o vidente Eutífron, depois de dizer que vê o futuro, reconhece, sem perceber, que, sobre o futuro imediato de Sócrates, “talvez nada aconteça”! Mas diz “talvez” porque, claro, não vendo o futuro, não saberia dizer… Se o leitor lê o diálogo com pressa, não vai perceber a série de ironias que aparecem já nos primeiros intercâmbios do diálogo. Na próxima semana, veremos quem, por sua vez, Eutífron está processando e por que.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. uma das qualidades que adoro em Sócrates é a humildade. a capacidade de compreender que sabia o que não sabia, era o cerne de seu pensamento e modus vivendi do nosso ateniense que, por razões adversas ao seu tempo pôde beber cicuta como forma de não renunciar a sua própria consciência.

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