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A maiêutica socrática IV: O método socrático em ação

Aos que começavam afirmando que sabiam, Sócrates levava a admitir o oposto. O verdadeiro filósofo, pelo contrário, é levado a refletir precisamente por reconhecer sua ignorância e querer superá-la por meio de seu próprio pensamento

Gonçalo Armijos Palácios

Prometi, no último artigo, mostrar o que fazia Sócrates com interlocutores que começavam afirmando sua grande sabedoria e, a contragosto, terminavam reconhecendo sua ignorância. Lendo diálogos como o Eutífron é possível compreender melhor em que consistia esse formidável método argumentativo: a maiêutica — o tipo de diálogo que Sócrates empregava para desmascarar impostores.

Lembremos que, enquanto aguardava seu julgamento, Sócrates encontra Eutífron, quem, por sua vez, estava no lugar para processar seu pai por homicídio. Segundo Eutífron, sua ação se justificava por ser um ato piedoso. Chocado, Sócrates quer saber que entende Eutífron por ‘‘piedade’’, o que este se esforça por não responder. Pressionado, finalmente diz que “é piedoso o que é grato aos deuses e ímpio o que não lhes agrada”.1 Não vai ser difícil a Sócrates pôr em evidência as verdadeiras intenções de Eutífron para processar seu próprio pai pois, tendo este último dito antes que os deuses cometem atos como matar e acorrentar os pais, ou mesmo devorar seus próprios filhos, como determinar o que é grato a todos os deuses? Com perguntas, Sócrates o leva a admitir que, assim como os homens, os deuses têm profundos desacordos sobre inúmeras coisas — na religião grega da época, isto é. E o interroga: “Portanto, meu bom amigo Eutífron, segundo o que afirmas, os deuses têm diferenças entre si acerca do justo, do belo, do feio, e sobre o bom e o mau? Não existiriam, portanto, dissensões entre eles se mantivessem opiniões diferentes acerca dessas coisas? Não é assim?” “Raciocinas corretamente”, responde Eutífron. “E não é certo que aquilo que cada um deles considera bom e justo é também o que ama e que o contrário o aborrece?” Eutífron concorda e o filósofo continua: “Mas são as mesmas coisas, como dizes, que uns acham justas e outros injustas. De suas diferenças a esse respeito surgem as guerras e discórdias entre eles, não é”? “Com efeito”, responde Eutífron. E Sócrates continua: “Devemos afirmar, portanto, que as mesmas coisas são amadas e odiadas pelos deuses e que são ao mesmo tempo, para eles, gratas e desagradáveis”? Conclusão que Eutífron deve aceitar com um tímido “assim parece”. O que não evita que Sócrates mostre a contradição implícita na posição de Eutífron: “Ou o que é o mesmo (…) algumas coisas poderão ser ao mesmo tempo piedosas e ímpias”! Frente a essa conclusão, Eutífron não tem outra saída senão concordar.

Ali temos um primeiro momento da maiêutica Socrática. Partiu-se de uma afirmação (“piedoso é o que é grato aos deuses e ímpio o que lhes desagrada”) com a qual Eutífron fundamentaria a surpreendente ação de processar seu próprio pai. Mas é forçado a reconhecer, por ter admitido que os deuses fazem toda sorte de atrocidades, que, divididos como são, as mesmas coisas seriam gratas a uns deuses e odiosas a outros. Isso é admitir que as mesmas coisas são piedosas e ímpias por serem amadas por uns deuses mais odiadas por outros. Percebendo a admissão que fez, Eutífron encontra uma saída: “Creio, no entanto, Sócrates, que acerca disto [da sua ação contra o pai] não exista nenhum desacordo entre os deuses que chegue ao ponto de afastar o fato de que deva ser castigado aquele que matou injustamente”. (p. 41) Mas que prova Eutífron tem para estar tão seguro que todos os deuses aprovariam precisamente sua ação? É o que Sócrates quer saber: “Trata, pois, de provar-me claramente isso, isto é, que os deuses coincidem ao considerar lícito esse ato”. Mas o “piedoso” Eutífron acha que “Talvez isso não seja coisa de momento, Sócrates, embora considere que possa fazê-lo claramente”. O leitor não pode deixar de perguntar-se que se não é esse o momento, então não é nunca… Mais uma vez, Sócrates consegue levar seu interlocutor a um beco sem saída e trazer à tona o seu caráter: sem estar em condições de dizer o que é piedoso, por não saber, mesmo assim, processa seu próprio pai afirmando que o faz por ser um ato piedoso!

Pressionando Eutífron, Sócrates o força a reconhecer a diferença entre ‘‘ser piedoso’’ e ‘‘ser amado pelos deuses’’. Com efeito, os deuses amariam o piedoso por ter essa característica, a de ser piedoso. Mas, sendo os deuses gregos como eram, eles também poderiam amar o que não era piedoso. Conseqüentemente, uma coisa é ‘‘ser amado pelos deuses’’ e outra ‘‘ser piedoso’’ já que muitas coisas, piedosas e ímpias, eram amadas pelos deuses. Portanto, do amor dos deuses por alguma coisa não poderíamos inferir se ela era ou não piedosa sem, antes, saber o que é a piedade. E era isso que Sócrates, sem sucesso, exigia de Eutífron. O que conseguiu, no entanto, é confissões como estas: “Não compreendo o que queres dizer, Sócrates”, “Certamente já não sei dizer-te o que penso, Sócrates. Pois parece que tudo gira a nossa volta sem encontrar lugar fixo”, “Não sou capaz, Sócrates, de acompanhar-te em tuas análises”. Finalmente, Eutífron desiste e prefere ir embora, o que merece de Sócrates a última intervenção do diálogo: “O que vais fazer, meu bom amigo? Vais deixando por terra a grande esperança que tinha de aprender de ti o que é piedoso e o que não é”. Tudo em vão, pois Eutífron se afastou mesmo e o leitor termina sem saber o que é piedoso.

Em diálogos como o Eutífron, o leitor pode ver como deve ter sido a maiêutica socrática em ação, isto é, como fazia Sócrates para mostrar que, os que diziam saber, realmente nada sabiam. E era essa a intenção de Sócrates, desmascarar publicamente os que se apresentavam como sábios. Por isso, os resultados da maiêutica socrática eram negativos. Não é o caso da maiêutica nos diálogos em que Platão defende suas teorias. Mas sobre a diferença entre a maiêutica socrática e platônica, assim como sobre as razões que levaram Sócrates a desmascarar os pseudo-sábios, trataremos nos próximos artigos. Algo, contudo, podemos concluir: filósofo é aquele que se vê forçado a refletir pelo reconhecimento de sua ignorância, à diferença daqueles que nunca são levados a pensar por si mesmos por, entre outras coisas, jamais suspeitarem da firmeza de seus vastos conhecimentos.

1 Eutífron, in: Platão, Diálogos. S. l.: Nova Cultural, 1996, p. 39. (Col. Os Pensadores)

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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