De Sócrates herdamos um método ético-dialético: através do ir e vir de razões, o falso e a contradição vêm à tona para que, pelo reconhecimento do erro, possamos escolher o caminho da virtude
Sócrates foi processado por ateísmo e por corromper os jovens com seus ensinamentos. No diálogo Apologia de Sócrates, Platão nos permite ter uma idéia aproximada de como deve ter sido o julgamento de seu mestre. Naquela época, cabia aos acusadores — ou a seus representantes, geralmente oradores muito bem pagos — fazer a acusação pública; ao acusado, por sua vez, defender-se pessoalmente ou pagar alguém para que o faça. Neste caso, Méleto e Ânito, dois dos seus acusadores, fizeram pessoalmente suas intervenções; Sócrates, a sua.
No início, Sócrates decide se defender de dois tipos de acusadores. Daqueles que, mesmo sem tê-lo levado a juízo, o tinham caluniado há muito tempo e, depois, dos mais recentes, Méleto, Ânito e Lico. Entre os que indispuseram os atenienses contra Sócrates encontra-se o famoso comediógrafo Aristófanes, que escreveu As Nuvens para ridicularizá-lo. (Esta obra existe e está traduzida ao português.) Nela, Sócrates aparece flutuando no ar e falando disparates. Apesar de ter sido uma comédia, a obra exerceu uma influência negativa e ajudou a aumentar a animadversão de muitos contra o filósofo. “Que assacam contra mim os meus caluniadores?” Pergunta Sócrates, e responde: “Como num processo regular, precisarei apresentar-vos o teor da acusação: Sócrates erra por investigar indevidamente o que se passa em baixo da terra e no céu, por deixar bons os argumentos ruins e também por induzir outros a fazerem a mesma coisa. (…) Proposições desse jaez vós mesmos vistes na comédia de Aristófanes, em que é apresentado um indivíduo de nome Sócrates, que se gaba de andar pelo ar e enuncia um sem-número de tolices, de que eu não entendo nem muito nem pouco”. (19b-c) Mas aqueles antigos acusadores, lembra Sócrates, não o caluniavam na sua presença e deles nunca pôde se defender. Contudo, influenciaram as pessoas a se indispor contra o filósofo.
A origem do ódio contra Sócrates está no episódio do oráculo já referido. O oráculo em Delfos, questionado sobre se havia alguém mais sábio do que Sócrates, respondeu que não, que não havia homem mais sábio do que ele. Sócrates não se esquece de lembrar isso na sua defesa frente ao júri e provoca a revolta dos presentes, aos que em várias oportunidades durante o julgamento chama à ordem. Perplexo ao saber do oráculo, Sócrates decidiu provar que este devia estar equivocado. Para isso, decidiu questionar todos os que se diziam sábios, querendo mostrar que havia quem sabia mais do que ele próprio. Mas sem sorte. Só conseguiu mostrar que os que se diziam sábios pouco ou nada sabiam — entre os quais havia eminentes políticos e poetas. O que ele conseguiu com tudo isso, é claro, foi o ódio de várias pessoas, muitas delas poderosas. Mas também falava com pessoas humildes, e eram estas que sempre lhe pareceram melhores e menos arrogantes que as que se tinham por eminentes. Vejamos como conta isso o próprio Sócrates: “Vi-me, portanto, na contingência de continuar com o estudo no sentido do oráculo, junto dos que pareciam saber alguma coisa. E, pelo cão!, atenienses, a verdade precisará ser dita; aconteceu comigo o seguinte: com raríssimas exceções, os indivíduos tidos na mais alta conta foram os que me pareceram mais deficientes, quando examinados de acordo com o preceito da divindade, enquanto outros, considerados em geral como inferiores, se me afiguraram de mais claro entendimento”. Interrogou políticos e poetas famosos, mas também artesãos. De qualquer forma, o resultado foi sempre o mesmo, todos imaginavam saber mais do que realmente sabiam.
Sócrates e o Primeiro Exercício Hermenêutico — Na história da filosofia ocidental, este episódio talvez represente o primeiro grande caso de um exercício hermenêutico, isto é, o primeiro caso em que um grande filósofo se esforça por interpretar o significado de uma afirmação prenhe de sentidos ocultos. De uma afirmação que, num sentido, é clara, mas, de tão clara, paradoxal: o oráculo, por cujo intermédio o deus se exprime, diz de forma inequívoca que há um homem que é mais sábio do que os outros, e esse é Sócrates. Mas, à diferença de outros pensadores da época (matemáticos, geômetras e estudiosos das estrelas), Sócrates nunca publicou uma linha ou propôs alguma teoria. O oráculo precisava ser interpretado. A conclusão desse exercício hermenêutico é posto pelo filósofo desta maneira: “Mas o que penso, senhores, é que em verdade só o deus é sábio, e que com esse oráculo queria ele significar que a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que não se referia particularmente a Sócrates e que se serviu do meu nome apenas como exemplo, como se dissesse: Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer, realmente, nada no terreno da sabedoria”. (23a-b)
Esse exercício hermenêutico leva Sócrates a extrair uma conclusão surpreendente. Interpreta o oráculo como tendo-lhe imposto uma obrigação: a de questionar os homens para, ao provar sua ignorância, fazê-los mais humildes, observadores dos verdadeiros valores e conhecedores da virtude. E é o que ele diz: “Continuo até hoje a andar por toda parte, obediente à intimação divina, a examinar e questionar o estrangeiro ou concidadão que se me afigura sábio. E quando não me parece que o seja, sempre que ponho em relevo sua ignorância é para bem servir a divindade”. É o primeiro caso do emprego filosófico do método dialético. É esse o sentido profundo da maiêutica socrática: o método dialético ao serviço da virtude.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |