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A maiêutica socrática VII: A ética do exemplo e a ética umbilical

A recusa de Sócrates a fugir da prisão deveria lembrar-nos da antiga ética, ancorada na solidariedade, para diferenciá-la da que hoje impera, a ética umbilical

Gonçalo Armijos Palácios

Ética e moral, como sabemos, provêm, respectivamente, do grego “ethos” e do latim “mos”, que significam uso, hábito, costume. As pessoas freqüentemente se perguntam — e me perguntam — o que seria essencialmente ético ou intrinsecamente moral. Talvez seja difícil, se não impossível, mostrar algo que seja intrínseca ou essencialmente ético ou moral (isto é, apontar uma ação correta per se). Com efeito, o que é passível de ser considerado ético ou moral são nossas ações (e as decisões que a elas nos levam, as motivações que encerram, os fins que almejam…). Por isso, dependendo das circunstâncias, não poderíamos condenar como não tendo valor moral ou ético uma ação que, em outro contexto, deveria merecer nossa repulsa. Agir corretamente, do ponto de vista ético, não é coisa fácil — isso já sabia Aristóteles e o disse claramente na sua Ética a Nicômaco.

A condição para que consideremos correta uma ação está na possibilidade de vermos uma adequação entre ela e algo mais. Esse “algo mais” não é outra coisa que os costumes que nos servem de parâmetro, de base, de ponto de referência e de medida.

Um homem sozinho, um Robinson Crusoé, não pode ser propriamente ético pois não tem a possibilidade de agir em comunidade. Assim, suas ações não passam de ter conseqüências meramente individuais. Se um tal aventureiro abandonado numa ilha não pode ter ações éticas ou morais, não pode haver, portanto, ações éticas ou morais isoladas. O hábito, o costume e o uso, são hábitos, usos e costumes de uma comunidade e é em relação a eles que comparamos as ações particulares de cada um dos membros dessas comunidades. Não há, em síntese, um padrão diferente para o nosso julgar ético que não seja o modo como vivemos agora, a forma como já vivemos no passado e a maneira como deveríamos viver no futuro.

Como disse no último artigo, a grandeza de Sócrates consiste em ter dado uma lição ética vivendo eticamente. Ele não escreveu sobre eticidade, ele viveu a eticidade. O que não significa outra coisa senão praticar — e não só pregar — os valores que o Estado respeita.

No diálogo Críton, Platão mostra o que seria mais um dos exemplos de Sócrates: negou-se a escapar da prisão apesar de alguns de seus amigos já terem feito os arranjos para facilitar sua fuga.

Nesta série de artigos sobre a maiêutica socrática quis mostrar como argumentava o filósofo com aqueles que se diziam sábios sem o ser. Nos diálogos Eutífron e Apologia vê-se isso claramente. No diálogo que hoje me ocupa, Sócrates não se interessa em provar que um pretenso sábio não sabe o que pretende saber. Aqui, Sócrates tenta mostrar as razões pelas quais Críton, seu amigo, está equivocado ao propor-lhe a fuga. Pois, de fato, Críton, assim como outros discípulos e amigos, está unicamente preocupado com a sorte do filósofo e quer vê-lo longe de Atenas o mais rapidamente possível.

Sócrates se limita a mostrar até que ponto é incoerente que alguém que viveu toda sua vida respeitando as leis da cidade, com uma só ação, destrua o que sempre se esforçou por fazer. Essa ação, tomada individualmente, parece não ser importante. O verdadeiramente importante é o significado da ação se considerada socialmente. Sócrates mostra que, se todos assim pensassem e agissem, as leis como um todo seriam destruídas. Noutras palavras, se o costume mudasse de tal modo que todos e cada um agissem pensando em si antes de pensar no todo, a preservação da própria comunidade fica ameaçada e a vida, dentro dela, impossível.

As discussões atuais sobre ética na política são confusas, hipócritas e vão do lirismo ao puro charlatanismo por justamente estarem inseridas num meio em que o costume é zelar, em primeiro e último lugares, pelos próprios interesses, nunca pelos interesses da comunidade. Mas não é de estranhar, se nas últimas décadas foi tomando dimensões inusitadas o egoísmo e o individualismo próprios de outras regiões do mundo. Assim, é fácil perceber que quanto mais afastada da metrópole é uma comunidade, mais solidária ela é. À medida que nos aproximamos dos grandes centros urbanos, a solidariedade vai cedendo espaço ao egoísmo exacerbado, quando não desaparece totalmente. Adotar estilos de vida e costumes diferentes significa não só abandonar antigos hábitos mas, principalmente, abandonar todos aqueles valores éticos que a esses antigos costumes estavam atrelados.

Hoje, cada vez mais, somos obrigados, pelo tipo de vida que a comunidade começou a adotar nas últimas décadas, a olhar só por nós, a só abrigar nossos particularíssimos sonhos e acalentar nossos privados anseios. Somos forçados, pela competitividade crescente, a olhar mais parar nós, com a conseqüência necessária de ignorar, e mesmo desprezar cada vez mais, os outros. À medida que são destruídos antigos costumes, antigos hábitos, os valores que os acompanhavam se perdem e vão inexoravelmente cedendo seu lugar a outros que refletem esses novos costumes, hábitos e usos: o uso, o hábito e o costume do interesse estreito, mesquinho, pessoal.

Quantos, príncipes ou plebeus, senadores ou réus comuns, evitam a punição ou fogem da prisão aproveitando-se do oportunismo e do imediatismo gerados pelos novos costumes. Sócrates, por sua parte, frente à possibilidade de fugir, imagina as leis do Estado dizendo-lhe: “Se morres, serás vítima da injustiça, não das leis, mas dos homens, e se sais daqui vergonhosamente, trocando justiça por injustiça e mal por mal, faltarás ao pacto que te obriga conosco, leis, e prejudicarás a muitos que não deveriam esperar isto de ti e a ti mesmo, bem como a nós, a teus amigos e à tua pátria”. Estamos quase no final do diálogo. Depois dessa intervenção, Sócrates ainda pergunta a Críton, o amigo que lhe sugeriu fugir: “se ainda podes dizer alguma coisa, dize-o”. Ao que Críton laconicamente responde: “Nada tenho a dizer, Sócrates”. E há alguma coisa mais a dizer?

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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