Tanto na sua vida, como na sua morte, Sócrates soube ensinar com suas ações o que não se consegue dizer só com palavras
Gonçalo Armijos Palácios
Hoje vou me ocupar do diálogo que mostra como devem ter sido os últimos momentos de Sócrates. Os diálogos sobre os quais tenho até hoje me ocupado tratam dos instantes anteriores ao seu julgamento (o Eutífron), do que aconteceu durante o julgamento em si (a Apologia de Sócrates) e de uma conversa com um amigo (o Críton), quando o filósofo já se encontrava na prisão. Nos dois primeiros diálogos podemos ver claramente a maiêutica socrática em ação, que consiste em mostrar a ignorância dos interlocutores de Sócrates. Com efeito, no primeiro diálogo, Sócrates mostra que Eutífron quer processar seu pai por homicídio desconhecendo o motivo que este alega para processá-lo: piedade. No diálogo inteiro, Eutífron faz o possível por não explicar o que entende por ‘‘piedade’’ e chega, inclusive, a dizer que já não sabe mais o que realmente pensa ao respeito. Na Apologia, Meleto é levado várias vezes a se contradizer em respeito aos termos da acusação a Sócrates: ateísmo. Nesses dois diálogos não se chega a outra conclusão que não seja a constatarmos a arrogância e o caráter pouco recomendável desses dois interlocutores do filósofo. Já no terceiro diálogo, Sócrates mostra que o pedido de Críton para que fuja está baseado na ignorância do que é cumprir com o dever.
No Fédon, Platão relata as últimas horas da vida de Sócrates. Neste diálogo podemos ver claramente a diferença entre a maiêutica socrática e platônica. Aqui já vemos teorias sendo defendidas e chega-se a resultados positivos. Neste diálogo, Platão defende a teoria da imortalidade da alma e vemos claramente a influência da filosofia de Heráclito e outros filósofos pré-socráticos.
Se tudo está sujeito a um eterno ir e vir de contrários, a vida na Terra deve ser precedida por uma vida na morte. Ou, noutras palavras, não poderia haver vida posterior sem uma vida anterior. Do mesmo modo, o destino das almas não poderia ser a destruição definitiva com a própria morte, sendo a morte, e a própria vida na Terra, apenas uma etapa necessária para a purificação da alma. Desse modo, vida e morte não passam de ser dois momentos necessários para o processo de purificação das almas que, em cada encarnação, têm a oportunidade de expiar culpas passadas e se aperfeiçoar. Esta teoria está intimamente relacionada com a teoria platônica do conhecimento. Pois se antes de nascer estávamos num mundo de essências, foi lá que aprendemos as verdades sobre todas as coisas. É durante o nascimento que esquecemos essas verdades e cabe ao filósofo, perguntando seus discípulos, trazer à tona essas verdades, fazendo, isto é, que os discípulos ‘‘lembrem’’ o que já sabiam numa vida passada. Desta forma, não existe propriamente conhecimento, já que conhecer é unicamente lembrar. Esta é a célebre teoria da reminiscência de Platão.
O Fédon é um diálogo rico em conteúdo filosófico e há muitas teses e teorias sendo defendidas e pressupostas. Em cada caso, o resultado é sempre positivo — é o exemplo de como deve ter funcionado a maiêutica nas mãos de Platão.
No entanto, à medida em que o diálogo se aproxima do final, a atmosfera torna-se dramática e o sentimento de tristeza começa a inundar o ambiente em que as intervenções ocorrem. É que está chegando a hora em que o carcereiro traga o veneno e o filósofo bebe a poção de cicuta.
Quando este chega, Sócrates lhe pergunta: ‘‘Então, meu caro! Tu que tens experiência nisto, que é preciso que eu faça’’? O carcereiro: ‘‘Nada mais … do que dar umas voltas caminhando, depois de haver bebido, e em seguida ficar deitado. Desse modo o veneno produzirá seu efeito’’. Fédon, o personagem escolhido por Platão para relatar o episódio, continua: ‘‘Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto nem dos seus traços. Olhando na direção do homem, um pouco por baixo e perscrutadoramente, como era seu costume, assim falou: — Dize-me, é ou não é permitido fazer com esta beberagem uma libação às divindades’’? (O carcereiro disse não saber.) Sócrates continuou assim: ‘‘Entendo, mas pelo menos há de ser permitido, e é mesmo um dever, dirigir aos deuses uma oração pelo bom êxito desta mudança de residência, daqui para o além. É esta minha prece; assim seja’’! Fédon continua: ‘‘E em seguida, sem sobressaltos, sem relutar nem dar mostras de desagrado, bebeu até o fundo’’. O diálogo termina assim: ‘‘Tal foi, Equécrates, o fim de nosso companheiro. O homem de quem podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, era o melhor, o mais sábio e o mais justo’’.
Esse foi o fim de um pensador que soube viver, e morrer, coerente com suas convicções.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |