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A Morte, a Multidão e a Promessa do Humano: A propósito do funeral de Francisco

ensaio de Severino Ngoenha e Filomeno Lopes

A morte, em todas as culturas e civilizações, permanece como o grande mistério: um silêncio que nunca foi quebrado. Mesmo as religiões que anunciam o céu, o nirvana, a ressurreição ou a reencarnação mantêm, diante da morte, a mesma reverência inquieta. Nunca ninguém voltou para nos dizer, com a limpidez da experiência, o que acontece depois da fronteira final. Talvez por isso, crentes de todas as religiões, agnósticos e ateus, se curvam diante da morte com a mesma deferência grave, como se, na presença dela, cessassem as guerras ideológicas, as rivalidades políticas, os muros de exclusão.

Foi este movimento humano essencial — de convergência silenciosa diante da morte — que a Basílica de São Pedro testemunhou neste Domingo de Páscoa. Porém, no funeral de Francisco, algo mais profundo pareceu emergir. A comoção popular não se limitou à homenagem tradicional reservada aos grandes homens. Não. A massa humana que encheu praças e ruas, oriunda de horizontes culturais, sociais e religiosos tão diversos, parecia pressentir, de maneira ainda inarticulada, que a morte de Francisco tocava um nervo mais íntimo da nossa época: o fim de um ciclo histórico e a abertura possível de outro.

A única ocasião comparável a este movimento foi a morte de João Paulo II, em 2005. A multidão que então acorreu a Roma simbolizava uma vitória: a vitória de uma ordem que emergia do fim da Guerra Fria. João Paulo II, polaco, lutador incansável contra o comunismo soviético, havia sido saudado como herói pelo império triunfante do capitalismo liberal. O seu funeral reuniu os grandes vencedores do século XX, num gesto de consagração.

Contudo, a história é ironia. No final da sua vida, João Paulo II, que havia combatido o comunismo, também intuiu que o capitalismo desenfreado estava longe de construir o Reino de Justiça que o cristianismo promete. A fraternidade que inspirara a sua luta parecia esvaziar-se na competição voraz do mercado global.

Francisco, por sua vez, encarnou desde o início outra lógica. Escolheu o nome do Poverello de Assis não como ornamento, mas como programa: uma Igreja pobre para os pobres, como afirmou no seu primeiro discurso. Mais do que proclamar, fez da ação o método: abriu a Porta Santa não em Roma, mas em Bangui, coração de um conflito africano esquecido; denunciou a “globalização da indiferença” em Lampedusa, diante dos corpos migrantes; criticou a idolatria do lucro em Laudato Si’ e invocou uma nova fraternidade universal em Fratelli Tutti. Em cada gesto, em cada palavra, Francisco pareceu querer recordar que o humano só se realiza plenamente no cuidado do outro.

Assim, a sua morte não apenas mobilizou fiéis, mas atraiu também as consciências inquietas de um tempo em crise. De Gaza a Khartoum, do Donbass a Cabo Delgado, de Kivu ao Sahel, o mundo de 2025 está dilacerado por conflitos que já não obedecem a lógicas claras de justiça ou libertação. As guerras atuais — incluindo aquelas que assolam Moçambique — são expressões cruas de um sistema internacional esgotado, onde a força dita a lei e a morte se banaliza.

Nesta configuração, Francisco não foi apenas o Papa de uma Igreja, mas o sinal — ainda tímido — de uma outra possibilidade. Não a utopia ingénua, mas a exigência realista de uma nova convivência humana, fundada na solidariedade, na justiça restaurativa e no respeito da dignidade de todos. A universalidade que ele propôs não é expansionista nem imperial, mas humilde, inclusiva, ecuménica.

Por isso, talvez, ao redor do seu corpo, acorreu não apenas uma multidão de fiéis, mas também uma humanidade que, em seu íntimo, procura sepultar um mundo obcecado pela dominação para renascer numa convivência mais justa. O seu funeral foi menos um ato de luto do que uma vigília de esperança. A Páscoa, festa da ressurreição, pareceu encontrar ali um eco concreto: a morte de Francisco pode tornar-se uma semente lançada na terra árida da nossa história.

Resta-nos perguntar: teremos nós, humanidade exaurida, a coragem de fazer germinar essa semente?


ensaio de Severino Ngoenha e Filomeno Lopes

Marcos Carvalho Lopes

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