Hoje, o neoliberalismo está para deixar campo ao neo-iliberalismo, ou seja, a um sistema em que o que uma vez era considerado a excepção se tornou regra, e nem precisa daquele assistencialismo da cooperação internacional que foi deitado para o lixo por Trump (caso da USAID), juntamente com todos os que dele beneficiaram em países em dificuldades, como Moçambique e grande parte da África.
Ensaio de Severino Ngoenha, Augusto Hunguana, Giverage do Amaral e Luca Bussotti
O filósofo italiano Giorgio Agamben é um dos pensadores mais instigantes/estimulantes da atualidade. Em Estado de Exceção, debruçasse sobre a contraditória figura dos momentos antes “extraordinários” – de emergência, sítio, guerras – onde o Estado usa de dispositivos legais justamente para suprimir os limites da sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Segundo o autor, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. Um poder além de regulamentações e controle que, para Agamben, hoje não é mais excecional, mas o padrão de atuação dos Estados.
Estado de Exceção é uma reconstrução histórica e uma análise da lógica e da teoria por trás da sua evolução e consequências, de Hitler aos prisioneiros de Guantánamo. Para isso o autor destrincha o pensamento de Carl Schmitt (autor alemão, contemporâneo de Walter Benjamin, com quem polemizou) e seus estudos sobre ditaduras; filósofos e teóricos do direito; e as mudanças nas constituições europeias e norte-americanas que levaram a instituição do estado de exceção como paradigma.
“Combatentes ilegais”, Patriot Act, Bush como commander in chief dos Estados Unidos, toque de recolher, zonas de proteção em encontros de organismos internacionais, pacotes económicos, limites e contradições das democracias modernas, guerras preventivas e o executivo legislando por decretos e medidas provisórias são temas atuais abordados e que se relacionam diretamente com a análise de Agamben.
Obra fundamental para entender o Estado e a política contemporânea, Estado de Exceção expõe as áreas mais obscuras do direito e da democracia. Justamente as que legitimam a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança, a serviço da concentração de poder.
Existem pelo menos duas tipologias de governação em que a excepção está se tornando regra, e que podem ser classificados de modelos do neo-iliberalismo. A primeira é mais característica dos países ocidentais, onde a democracia moderna nasceu e que geralmente se apresentam ao público como modelos exemplares de respeito das normas e da divisão dos poderes, a partir do direito internacional.
O mecanismo com que a excepção, nestes países, se torna regra passa através de processos eleitorais. Não existe, hoje, no mundo ocidental, um chefe de estado ou de governo que não tenha sido eleito através de processos regulares, transparentes e justos, espelho da vontade popular. Entretanto, alguns desses líderes usam a alavanca do voto para justificar a remodelação de uma ordem – a neoliberal da globalização – que, apesar de injusta, assentava em regras minimamente compartilhadas, a partir dos vários acordos a nível internacional.
Como escreveu recentemente Quinn Slobodian, o neoliberalismo precisava de regras nacionais e internacionais para justificar a divisão internacional do trabalho, o extrativismo económico dos países do sul global por parte dos países do norte, assim como de alguma moderação deste sistema – por exemplo mediante a cooperação internacional – capaz de manter este mesmo sistema em vida.
Hoje, o neoliberalismo está para deixar campo ao neo-iliberalismo, ou seja, a um sistema em que o que uma vez era considerado a excepção se tornou regra, e nem precisa daquele assistencialismo da cooperação internacional que foi deitado para o lixo por Trump (caso da USAID), juntamente com todos os que dele beneficiaram em países em dificuldades, como Moçambique e grande parte da África.
Alguns exemplos podem esclarecer o conceito de um neoiliberalismo que faz da excepção a regra: primeiro, o uso da força a nível global voltou a constituir uma arma lícita, aceite internacionalmente. Depois da guerra para conquistar territórios de Putin – herdeiro do comunismo soviético -, seguiu-se Netanyahu – herdeiro do holocausto– e, quem provavelmente vai continuar será o presidente americano Trump, que já afirmou ter na sua mira territórios de outros países, como a Groenlândia, o Canada ou a Faixa de Gaza. Eles fazem isso em nome do povo que os elegeu, portanto com toda a legitimidade político-jurídica. Porém, ao fazer isso, quebram alguns pontos básicos do neoliberalismo, sobretudo, o princípio de autonomia e autodeterminação dos povos; em segundo lugar, enfraquecem a autoridade das instituições internacionais.
Quer Putin, quer Netanyhau foram condenados pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade, mas quase que nenhum Estado ligou para esta decisão. Aliás, com a vitória de Trump eles foram novamente admitidos na comunidade internacional: o presidente americano teceu logo com Putin discursos sólidos para pôr fim à guerra na Ucrânia; entretanto, a perspectiva de Trump não tem nada a ver com questões humanitárias, pois ele já declarou que os Estados Unidos irão garantir a ajuda a Kiev apenas em troca de seus metais raros (“rare metals for aid”). Assim, o extrativismo económico – que o neoliberalismo procurava esconder ou amenizar – torna-se, no neoiliberalismo, modalidade “normal” de resolver as crises internacionais, sem nenhuma referência ao direito internacional.
Ainda mais explícito é o caso de Israel. Trump tinha encontrado Netanyhau já durante a sua campanha eleitoral, e o premier de Israel foi o primeiro chefe de governo que Trump viu depois da sua eleição, legitimando o genocídio em curso na Palestina. Mas Trump foi muito além disso, ele declarou que a solução da Faixa de Gaza é a remoção completa de todos os seus habitantes e o controlo deste território por parte dos Estados Unidos.
O segundo elemento do neo-iliberalismo – que transforma a excepção em regra – é a concentração dos poderes económicos e tecnológicos com o poder político. A administração Trump, com a sua ligação explícita com Elon Musk, é exemplo paradigmático dessas núpcias, contra natura. Aqui também, em comparação com o neoliberalismo, houve um salto (mortal) considerável. Hoje, os lobbies americanos não estão – formalmente – fora da esfera política, procurando influenciá-la, mas se transferiram diretamente para dentro dela. Nunca se viu, na história da humanidade, uma concentração tão grande de poderes – económicos, tecnológicos e políticos – como neste momento nos Estados Unidos. Será esta concentração que irá guiar a revolução apenas iniciada, e que irá levar a uma ordem mundial completamente diferente daquela que temos conhecido, cujo símbolo é a inteligência artificial. Diante de tais poderes, moldar o poder judiciário – a nível nacional e internacional – ou o poder legislativo será um jogo de crianças.
O terceiro elemento é uma injunção. A anulação ou o aniquilamento da doutrina do equilíbrio dos poderes e das regras do direito internacional devem ter um suporte maior do que o “simples” processo eleitoral. Como outrora com o nazismo de Hitler, em parte também com o fascismo de Mussolini hoje: Trump, Putin, Netanyhau, Orbán, Bolsonaro (…) buscam a sua legitimidade na religião.
Max Weber definiria este aspecto como “carisma”, mas aqui estamos um passo a frente, em relação ao conceito clássico de carisma. Carismáticos eram também Fidel Castro ou Lenine, Amílcar Cabral ou Samora Machel, porém, estas personagens nunca usaram a religião para justificar e fortalecer o seu poder. Mutatis mutandis, os representantes actuais do neo-iliberalismo precisam, todos eles, desta vertente religiosa para justificar a quebra de regras do “sistema”, tornando o que deveria ser excecional, a regra. A religião aparece com garante do novo iliberalismo no qual confluem personagens e heranças políticas completamente diferentes, mas que encontram nesta nova ordem mundial uma perigosa convergência.

A biopolítica do iliberalismo no ocidente, torna-se, de facto, necropolítica quando transferida, olhada e/ou pensada a partir do continente africano que também e parte do neoiliberalismo, embora com características próprias. A África conhece, desde o advento das democracias, sistemas sui generis, em que o político – trampolim para económico-, confundem-se nas mãos das mesmas pessoas, em conluio permanente com os poderes oligárquicos do mundo ocidental. Em segundo lugar, não há pleitos eleitorais – no nosso continente – que não sejam imediatamente denunciados como falaciosos, falsos ou até em eleições trocadas. Estes fenómenos iliberais – fusão do politico e económico, manipulações eleitorais -, tem provocado uma transmutação axiológica que faz com que a falta de regra e de lei seja a norma e não uma exceção. No Congo, no norte de Moçambique, nos diferentes países do Sahel, na Líbia ou na Somália, os conflitos – para a extração desregradamente regrada – dos recursos, com os seus corolários de pobreza, trabalho infantil, dependência e subdesenvolvimento, tornaram-se regra, norma e não exceção.
Em Moçambique desde os acordos de Roma e o neoliberalismo que nos foi imposto, nós aceitamo-lo, mas fizemo-lo, transformando-o num aliberalismo. As regras da liberdade de voto, da expressão da vontade popular, nunca foram apanágio específico da nossa maneira de viver em comum e, por isso, a violência política, económica e social – e até militar- tornaram-se norma.
A rebelião e manifestações em curso, nascidas (em principio) para desconstruir a anormalidade normalizada estão a transformar-se, por sua vez, numa ordem anárquica – que não se limita a negar as regras do estado (viciado) – e niilista de destruição que, para além dos desmandos, vai acarretar consigo mais pobreza, mais irregularidades. Entretanto, enquanto isso acontece, o saque de recursos como gás, rubis (…) não parou. Todavia, o verdadeiro risco é de transformar o caos na nova norma iliberal.
Não há possibilidades de resistir e/ou debelar o perigo necropolítico do neoileberalismo entre nós, senão em repor um mínimo de ordem. Não necessariamente a ordem antiga, ligada a uma oligarquia no poder, mas uma nova ordem que passa por reformas profundas das nossas instituições. A condição sine qua non para que isso se faça, é parar com a anarquia niilista – que tende a se normalizar- e buscar consensos e verdades concordadas; isso não se fará nem que monólogos e/ou polilogos, mas através de um processo de diálogo.
Todo o processo de conflito, até o mais anárquico e niilista, termina numa mesa de conversações. A questão é quando. Quanto mais tempo o conflito perdura, mais as feridas (fisiológicas e sociais), os dilaceramentos, as destruições serão graves, profundas e, por isso mesmo, mais difíceis de curar e remediar. A grandeza e a heroicidade dos lideres políticos reside na capacidade de irem para além das convenções, protocolos, princípios e razões. A razoabilidade esta na sua capacidade de ir para além das próprias razões e verdades, na capacidade de buscar consensos e verdades com-construídas (…).
O tempo não é nosso aliado, não joga a nosso favor. Corramos, com toda a velocidade que a urgência que situação impõe. Corramos, não percamos tempo, não temos tempo…
Estão em causa a integridade do pais e a unidade do nosso povo!