ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Geveraz Amaral e Augusto Hunguana
O sociólogo e futurólogo norte americano, Alvin Toffler, escreveu um famoso livro intitulado “A terceira onda” (1980), no qual descreve os sinuosos caminhos da evolução da sociedade humana, desde o tempo do predomínio das actividades agrícolas, passando pela fase industrial, a era pós industrial, até a era da informação. Mais do que um tratado de sociologia ou de futurologia, a terceira onda parece uma obra de filosofia da história e se presta a refletir sobre a particular (a)historicidade africana feita de episódios de curte durée, duteis e versátis , porque sujeita a trilhar sendas determinadas pelos fautores da história oficial.
Fazemos abstração e metemos em epoke (entre parêntesis) como diria Husserl, a blasfémia dos cinco séculos de escravatura, gloriosa epopeia da civilização europeia -e de ahistoricidade africana-, que só pode ser adjectivada com o único epíteto que se lhe adequa: o mal radical, com o qual Hannan Arendt apostrofou o nazismo e os nazistas. Depois do fim legal da escravatura (1865 nos EUA e 1885 nos lusos brasileiros), a África vive na crista da sua quarta onda.
A primeira onda iniciou quando Alemanha, vencedora da guerra da franco- prussiana (1870 – 1871), sob égide do Chanceler de ferro, Otto von Bismark, acata a sugestão de Portugal e convoca uma das maiores conferências da segunda metade do século XIX (de 15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885), a infelizmente célebre conferência de Berlim. A Europa civilizada (Alemanha, Áustria -Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã- Bretanha, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia, mas também o império Otomano e os Estados Unidos) reúne-se com a agenda única de esquartejar a África; com caneta e régua dividiram o continente entre as grandes potências de então. Na sequência veio a colonização efectiva, cujas sequelas ainda hoje vivemos, seja em termos culturais, em termos geo políticos, em termos de capacidade ou incapacidade de produção dos países, em termos de dificuldades de organização da política interna (…). A Alemanha obteve o ambicionado galardão (estatuto) de potência -como o Reino Unido e a França-, cujo troféu foram os territórios africanos (Camarões, Namíbia, Tanzânia) que ela conseguiu arrebatar. Ser potencia significa ter possessões africanas…
A conferência de Berlim demonstrou que o Império Alemão já não podia ser ignorado, mas ela não solucionou os litígios de fronteiras disputados pelas potências imperialistas, o que levou (entre outras razões) a guerra mundial de 1914 a 1918 -com os africanos a serem usados como carne para canhão. O tratado de Versalhes (que os alemães classificaram de diktat -imposição), pôs termo a primeira guerra mundial (depois do armistício de Compiegne de 1918) e determinou no seu artigo 119 que : “A Alemanha renuncia, em favor das potencias aliadas, a todos os direitos sobre as colónias ultramarinas”. Com a perda das possessões Áfricas, a Alemanha perde o estatuto de potência e a África entrava na sua segunda onda, caracterizada pelo predomínio absoluto da França e da Inglaterra.
O fim da segunda guerra mundial ditou a emergência de novas potências, sem colónias em Africa, mas ávidas de aceder aos seus recursos. A guerra fria a que se livraram os EUA e a URSS obrigou a que os emergentes países africanos, -apesar da sua vontade de se inscreverem no espirito de Bandung- a se alinharem a um dos dois blocos em conflito. Assim, a África conheceu uma nova fragmentação, desta vez ideológica, entre o grupo Monróvia e o grupo da Casablanca. Esta bipolaridade só terminou com a caída o muro de Berlim, o que levou a curta e efémera globalização liberal.
Hoje a África vive no desnorteamento da sua quarta onda, que é a nova corrida de antigos e novos conquistadores em direção ao continente. Já não são só as potências ocidentais, mas correm hoje para África todos aqueles que têm veleidades de se apresentarem no espaço mundo como potencias; a África é o terreno de afirmação de velhos e novos poderes hegemónicos. A iconografia política tinha nos habituado a um presidente francês (como François Mitterrand na conferência de la Baule) no púlpito -como um bispo em cátedra-, rodeado de presidentes africanos que pareciam catecúmenos ao redor do catequista para aprender a doutrina. Na onda actual, os catecúmenos passaram a ser todos os cinquenta e quatro presidentes africanos e a multiplicação dos bispos apostatas, corresponde a multiplicação herética das seitas: Franca-Africa, EU-Africa, Rússia-Africa, Turquia-Africa, China-Africa, India-Africa, Brasil-Africa, Italia-Africa.
Essas iconografias não são só uma cedência acrítica a uma subalternidade, simbolizam também e sobretudo, a nova multifacetada corrida em direcção ao continente, aos seus recursos que, como nas vagas precedentes, não exita em sacrificar a vidas das pessoas e das comunidades (Gongo, Sudão, Etiópia, Líbia, Cabo Delgado…). Só em Cabo Delgado -na Baía do Rovuma- estão americanos, franceses, italianos; em Montepuez ingleses, em Balama australianos, em Tete os brasileiros da Vale foram substituídos por indianos, em Maputo os novos prédios são construídos por turcos, os restaurantes cada vez mais portugueses e os chineses estão urbe et orbis (em toda parte).
O primeiro congresso Pan-Africano de 1900 ( em Londres) foi realizado sob o lema Unidade e Resistência contra a divisão de Berlim o colonialismo da primeira Vaga. O segundo Congresso de 1919 (em Paris) foi concomitante e acompanhou com vigilância crítica o congresso de Versalhes, do qual conseguiu que as ex colónias alemães deixassem -juridicamente- de ser colónias e passassem a ser denominadas territórios sob ocupação. Em 1963 a OUA nasceu com o objetivo claro de limitar a balcanização (fragmentação) africana da terceira onda.
Em 2018 a historiadora francesa Fanny Pigeaud e o economista senegalês Ndongo Samba Sylla publicaram um livro com título eloquente : L’arme invisible de la FranceAfrique e em 2024 De la démocratie en Francafrique. Eles mostram como nas “democraturas” da FrançaÁfrica (mas também da Commonwealth) é impossível aceder ao poder sem alinhamento prévio e completo com a razão colonial. A única alternativa de mudar o status quo, é o recurso golpes militares; foi o que aconteceu no Mali, no Burkina e no Níger. Trata-se, sim, de golpes de Estado, porém não anticonstitucionais mas como única alternativa da (continuação da) luta anti colonial. A SECAM (Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagascar ) -que faz referência a teologia da história-, classificou os actuais golpes de estado de messiânicos (…) e ponto de viragem para a África (…).
O drama das revoluções africanas (desde Toussaint Louverture e a revolução Haitiana) é a sua vulnerabilidade. Todos sabemos que os jovens oficiais, dada a desproporção de forças, das alianças supremacistas do atlantismo e da cobardia dos lacaios da CDAO, acabarão sucumbindo. Trucidados como Machel, Cabral, Sankara, Kadafi (…) e, se tiverem sorte, serão só derrubados como Kwame Nkrumah por um golpe de estado, sujeitos a sanções drásticas como Mugabe (Cuba, Venezuela…), ou assediados por um incremento do fornecimento de meios militares e bélicos (guerra proxy – por procuração) aos chamados terroristas, muitos deles suscitados e alimentados pelos neocolonialistas do ocidente.
O recurso desesperado e defensivo a Rússia (ou a China), oferece aos ocidentais a possibilidade de uma narrativa e justificação cómodas, para as suas cruzadas dentro do continente africano. o sofisma passa a ser: “não são os africanos que não nos querem mas é a Rússia (e a China) que disputam os interesses ocidentais com o imperialismo de Putin e a Nova Rota da Seda de Xi Jinping”. Então se reactualizam as estratégias desenvolvidas pelos mestres da realpolitik durante a guerra fria, como Kissinger (Plano Condor); suscitar regimes militares ou totalitários -como aconteceu com golpes militares em toda a América latina, ou como foi a imposição de regimes autoritários e totalitários de direita no Uganda de Idi Amin Dada, no Congo com Mubuto Sese Seko, na República Centro Africana com Bokassa (…). A democratura francAfricana do Senegal deu o pontapé de saída, prendendo e impedindo que candidatos populares (Ousmane Sonko) participem dos sufrágios e adiando/temporizando a espera que o francafricano Karim Wade regularize a sua (falsa) renúncia a nacionalidade francesa ( o que foi feito num tempo recorde pelo primeiro ministro francês Gabriel Attal), para poder tomar as rédeas do pais e garantir a continuação da liberdade (democratura) colonial. Se o Senegal anula as eleições com pretextos banais e falaciosos, o que acontecerá no Moçambique ruandizado (legião estrangeira francesa), onde a proxy guerra em Cabo Delgado, afecta quase a totalidade da província?
Nesta situação aporética, o que temos que fazer para preservar as nossas independências, as nossas liberdades, e a nossa possibilidade de desenvolvimento? A união africana -para além das sequelas da terceira onda, Monrovia versus Casa Blanca- nem sequer se consegue reunir sem a presença espionistica dos observadores ocidentais. É para observarem o que? A que serve essa presença senão para impedir que os africanos tomem decisões e disposições para, enfim, se libertar deste peso enorme que, como uma espada de Damocles, continua a pender, ameaçador, sobre as nossas vidas e cabeças?
Das cinco regiões do continente, CEDEAO (a mais submissa a um colonizador que nunca se desmentiu), é o primeiro teatro de confrontações em que a luta pela emancipação é transmudada numa nova guerra fria. De um lado, uma juventude – no Burkina Faso, Niger e Mali- que compreendeu que as aspirações de liberdade não podem ser obtidos pelo campo minado das eleições, ciosamente vigiadas pelos poderes neocoloniais e, por isso, o imperativo de recorrer aos golpes militares. Do outro, aqueles que depois da tentativa falhada de levar a CEDAO a intervir militarmente e enquanto se procura a solução ao problema -o novo kissegerismo-, trama nos países nevrálgicos da região, impedindo participação de candidatos populares nos sufrágios e até deslocando a data das eleições para garantir a participação e eleição de um candidato conivente com os seus interesses.
No Sul, A SADCC nascida como uma organização política regional para resistir ao Apartheid, com o fim do regime racista foi, maquiavelicamente metamorfoseada em SADC; quer dizer, a dimensão política ficou subordinada a interesses económicas, onde Elefantes como a África do Sul são supostos competir em pé de igualdade com países como a Malawi, Suazilândia, Botswana, Lesotho ou até Moçambique. O primeiro ministro canadiano dizia que fazer acordos económicos com os EU era como dormir comum Elefante, quando ele vira esmaga-te.
O resultado da passagem a SADC não é só a hegemonia da África do Sul (que nos esmaga), mas o resquício do apartheid, representado pela força económica que os Bóeres ainda detêm (brothers hodds), completamente aliada aos interesses do capitalismo internacional. Nem a União Africana, nem as organizações regionais estão em condições de proporcionar aquela dimensão de liberdade de que precisamos para nos encaminharmos em direção ao desenvolvimento .
Em Moçambique a guerra de Cabo Delgado -petrodjiadismo mascarado de religioso- começa a desvelar, com os malabarismos e tergiversações total(mente) neocoloniais, a sua natureza e propósitos: apoderar-se gratuitamente do gaz, enfraquecer ulteriormente o país ou até sudanizar ( fragmentar) Mocambique, para controlar o Canal de Moçambique. Os moçambicanos que pensam tirar proveito de um pequeno Cabo Delgado separado, num mundo em que os colossos se unem e voltam a África com posturas de um passado não ultrapassado, vivem num anacronismo histórico e esquecem que os sipaios também eram escravos. Como pensar que um território como Cabo Delgado, sozinho, possa resistir e fazer face aos grandes conglomerados de imperialistas reunidos para uma nova Berlim?
Porém, por quanto os outros sejam uma causa importante na situação actual da quarta onda, os principais responsáveis pelo desaire do país somos nós. É nossa responsabilidade de nos dotarmos de meios (humanos, políticos, económicos e estratégicos) a altura dos desafios actuais. A responsabilidade da liberdade (Booker Washington) e de uma nação, não se compadecem com a resignação, defetismo, mesquinhice, pequenez (…). A responsabilidade exige os valores (axiologia) da abnegação, determinação, luta, mas sobretudo, patriotismo. É a este preço -que implica a unidade entre todos-, que podemos traçar o que Eboussi Boulaga chamou as “Linhas de Resistência”. A lição dos primeiros congressistas pan africanos (na fronteira entre o fim da escravatura e o início do colonialismo) é um postulado que nos deve interpelar: Unidade (como condição) e (da) Resistência. Esta é a missão histórica desta geração (Frantz Fanon), tão importante quanto foi a luta de libertação.