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ACADEMICISMO – Ideologia e verdade II

É grande o preço que, na academia, se paga pela verdade

por Gonçalo Armijos Palácios

“Ideologia” é um desses conceitos que, por ter tantos sentidos, terminam não tendo sentido nenhum. Costuma prevalecer, no entanto, a acepção pejorativa dada por Napoleão e retomada por Marx. Estranhamente, o termo passa a ter estatuto científico na segunda metade do século 20, com Althusser. Digo “estranhamente” porque, pretensamente marxista, o substantivo “ideologia”, como foi usado por Marx em A Ideologia Alemã, não passa de ser um termo pejorativo, quase um insulto. Com efeito, Marx usa o termo “ideológico” para se referir a alguns filósofos alemães que, em vez de fazer contribuições à ciência, como os economistas Adam Smith e David Ricardo na Inglaterra, por exemplo, se perdiam em divagações que viam nas idéias a essência do real e não nas relações concretas entre as coisas e as pessoas.

O termo é muitas vezes usado para descrever uma orientação política: ideologia liberal, ideologia conservadora etc. Este talvez seja o uso menos problemático pois, efetivamente, as pessoas costumam ter uma visão geral das coisas, do ponto de vista político, e demonstram ter uma tendência a aceitar as mudanças, a preferir a manutenção de um determinado estado de coisas ou mesmo o desejo de uma volta a um passado mais ou menos distante. Podemos claramente reconhecer uma ideologia conversadora em aqueles inclinados a defender uma situação de privilégio de uns em prejuízo de outros, assim como uma ideologia reformista, progressista ou mesmo revolucionária em aqueles inclinados a defender os direitos de uma maioria em detrimento dos privilégios de poucos. Naturalmente, nem toda volta ao passado é um retrocesso como nem toda mudança revolucionária, um avanço, mas as pessoas que defendem uma ou outra coisa são etiquetadas como “reacionárias” ou “progressistas”, atribuindo-se aos termos sentidos valorativos. O fato é que todos nós temos interesses a defender, sejam estes menos ou mais abrangentes em termos de grupo. Ou seja, podemos pertencer a um grupo muito grande de trabalhadores organizados para reivindicar melhoras laborais. Ou, então, ser parte ou nos identificar com um grupo que defenda interesses empresariais. O discurso dos dois grupos é, em geral, ideológico, por representar certos interesses e propor uma certa organização social, econômica ou política que beneficie — ou pelo menos não prejudique — seus interesses. Perceba-se, no entanto, que este emprego de “ideológico” não pode ser considerado “irracional”, “inconsciente” e, pior ainda, “perverso”. Pois não há nada de irracional, inconsciente ou perverso no fato de as pessoas se organizarem voluntariamente e com clara consciência do que fazem para defender seus interesses ou propor uma certa ordenação, reordenação ou reforma — mais ou menos radical — da sociedade que lhes seja conveniente. Um mundo sem interesses e sem pessoas que defendam os seus por meio de ações ou palavras não existe nem poderá existir. Não podendo deixar de ter interesses não podemos, nesse sentido, deixar de ser ideológicos.

O problema aparece quando ações e palavras dissimulam suas verdadeiras motivações e finalidades. É o que ocorre, por exemplo, quando um discurso classista é transvestido e apresentado numa roupagem não classista. Quando se defende publicamente interesses que são de grupo mas que se os apresenta como sendo de todos. A possibilidade de tais discursos terem sucesso entre a população depende de inúmeros fatores — como o grau de maturidade política de um povo que, se for alto, poderia permitir que tais discursos pretensamente universais sejam reconhecidos pelo que realmente são.

A última década tem sido importante para reconhecermos o discurso ideológico no seu aspecto universalista. No início dos anos 90, com a queda dos países socialistas, difundiu-se a tese de que a história tinha acabado e que só havia uma opção econômica: a do capitalismo selvagem. Muitos escreveram tentando justificar essa opção e foram consolidando o que se chamou, em geral, neoliberalismo. A globalização, nos moldes neoliberais, foi apresentada como a única opção para os países sobreviverem na economia mundial. O paraíso neoliberal, porém, foi se desmanchando aos poucos e hoje tenta ser exumado e ressuscitado em cada encontro de Davos. Dez anos atrás, os defensores do socialismo estavam à defensiva, hoje, os neoliberais. Num e noutro caso, os próprios fatos obrigaram uns e outros a reformular suas teorias.

Ideologia e moralismo

Um dos problemas com o uso do termo “ideologia”, “ideológico” etc. é o moralismo ao qual esses termos foram atrelados pelos marxistas contemporâneos. Enquanto Marx usa o termo “ideologia” como sinônimo de “pseudociência” ou “o oposto da ciência”, marxistas o usaram num sentido completamente diferente. Qualquer discurso ou análise que não se adequasse aos cânones marxistas — determinados pela hierarquia do partido ou de algum pensador marxista elevado a santo — era tachado de “ideológico”. E com isso se queria significar “reacionário”, “malévolo”, “mal-intencionado”, “cínico”, “torpe” ou, simplesmente, “estúpido”. O feitiço, no entanto, voltou-se contra o feiticeiro pois toneladas — literalmente — de publicações de autores marxistas mereciam, e merecem ainda, tais apelativos. Aqui no Brasil temos casos notórios. Vejam-se, por exemplo, coisas muito conhecidas publicadas sobre o que ideologia e livros de texto que “convidam” a filosofar. Mas marxistas de outras latitudes tampouco escapam. Na minha época de graduação comprei um livro de filosofia e um dicionário de economia política, ambos publicados pela Academia de Ciências da União Soviética. Mesmo naquela época, com pouca preparação acadêmica, me foi possível, sem dificuldade alguma, reconhecer o eivado de disparates escritos naqueles textos. Disparates que eram repetidos pelos militantes marxistas, sem o menor escrúpulo, a torto e a direito. O interesse era político: espalhar e defender o pensamento de Marx de qualquer jeito — ou o que os soviéticos entendiam por marxismo — e defender a qualquer custo o que alguém tinha decretado como ortodoxia marxista. Os que discordavam eram execrados, banidos, perseguidos, presos e até assassinados, como foi o caso de Trotsky, morto no exílio, no México, por ordens de Stálin.

A mentira, o engano, a má-fé, fazem parte da natureza humana, assim como a verdade, a honestidade e a boa fé. Por muitos motivos somos uma coisa ou outra mas nunca de maneira consistente pois não somos sempre nem honestos nem sempre desonestos. Podemos ter a inclinação a ser honestos e a preferir a verdade ou, então, a tendência oposta. Dentro do espectro da escolha, podemos preferir uma coisa à outra. Podemos, claro, ser pressionados por obrigações partidárias ou conveniências econômicas a sermos desonestos, a não dizer a verdade. Lembremos daquele ministro: “O que convém, a gente mostra; o que não convém, a gente esconde”. Mas há pessoas que, desconsiderando pressões partidárias, de grupo de interesse ou mesmo a lealdade corporativa, tendem à verdade e a preferem ao engano, à fraude ou à omissão. Nesses casos, aspectos ideológicos, sejam quais forem, ficam em segundo ou terceiro plano e prevalece o compromisso com a verdade. Na academia, lamentavelmente, nem sempre é o interesse pela verdade que prevalece. E isso não é de hoje, Galileu, processado pela igreja católica, que o diga.


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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