Marcos Carvalho Lopes [1]
Romper o silêncio é sempre um desafio para quem escreve. Afinal, para que escrever se já existem tantas bibliotecas lotadas com obras magníficas de tantos gênios insuperáveis? Se aquilo que vamos dizer provavelmente é algo que já foi dito de forma melhor por outros? Se nossas palavras são condicionadas pelas compulsões do “espírito do tempo”, se a nossa formação, classe social e condições materiais, entre outros fatores? Além disso, corremos sempre o risco daquilo que escrevemos ser incompreendido ou considerado irrelevante. Então, por que escrever?
O escritor Raduan Nassar depois dos prêmios e sucesso obtido com seu romance “Lavoura Arcaica”, publicado em 1975, parou de escrever. Tornou-se fazendeiro e causou mal-estar ao dizer que atribuía mais valor à criação de galinhas do que à criação literária. Mas antes, no conto “Ventre Seco”, de 1970, explicava sua forma de corresponder ao mundo quando disse: “Em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio”.
O mesmo tema apareceu em “Lavoura Arcaica”, quando o protagonista pródigo, André, depois de fugir da casa dos pais, destacou a contundência e a textura do raivoso silêncio que lhe acometia a partir de uma escuta atenta daquilo que o lar de sua família calava, enfiando a mão no cesto de roupas sujas e se embrenhando em seus odores, restos, viscosidades, sonhos traídos. Extrair palavras destes “restos de vida”, sem artifícios teóricos, essa é a “estética do bagaço”, exposta pelo escritor paulista. A vida é maior que as palavras e a escrita não é um imperativo.
Voltemos agora nossos olhos para Albert Camus. O silêncio sempre foi uma tentação para o escritor argelino. No início de sua trajetória, ele demonstrava insegurança sobre sua competência para escrever algo relevante e, por vezes, considerou a possibilidade de abandonar a vida intelectual para dedicar-se a uma profissão comum. No entanto, para alguém de origem pobre que convivia com a tuberculose desde muito cedo (e que por conta desta doença não foi aceito pelo Estado como professor), o silêncio da morte era uma possibilidade sempre próxima.
A decisão de Camus de escrever já era consequência de sua disposição para construir uma “vida examinada”, aquela que, segundo Sócrates, é a única que vale a pena ser vivida. O anúncio abrupto feito no começo de “O Mito de Sísifo” de que a única questão realmente séria é aquela que se refere ao suicídio, só faz sentido quando se pressupõe que a filosofia é uma forma de vida e não uma mera especulação teórica.
A construção de uma arte de viver em tempo de catástrofe é um bom lema para sintetizar a trajetória de Camus do absurdo de “O estrangeiro” até a solidariedade de “A peste”. Quando morreu em um acidente automobilístico em 1961, Camus trabalhava num romance que retomava sua infância na Argélia. Uma das cenas da infância de Camus nos ajuda a entender como pensava e como se relacionava com a escrita. E podemos perceber como “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, guarda semelhança com a densa textura do silêncio de Albert Camus.
O escritor argelino não chegou a conhecer o pai, que morreu lutando na Primeira Guerra Mundial, mas sofreu com sua ausência. Viúva, pobre, analfabeta e com graves dificuldades de audição, sua mãe, Catherine Hélène, retornou para a casa da avó materna levando os dois filhos, Lucien e Albert. Hélène trabalhava arduamente para sustentar os filhos e entregava o dinheiro para a matriarca, deixando-a encarregada da educação dos netos, o que a velha fazia através da chibata.
Autoritária, a avó de Camus gostava de mostrar que quem mandava na casa era ela e não Hélène. Camus lembra que por vezes sua mãe chegava cansada em casa e a avó não estava. Ele a observava com ternura e pena, procurando desvendar naquele silêncio gestos ou palavras de ternura que ela nunca saberia expressar. Desconcertado, concluía que estas palavras não existiam: naquele silêncio compartilhado não havia o que desvendar, não havia mistério, mas ficava claro que ele amava sua mãe e ela o amava. “Dentro em pouco a velha vai voltar, a vida vai renascer, a luz redonda do candeeiro de petróleo, o oleado, os gritos, os palavrões. Mas agora, aquele silêncio marca um compasso de espera, um instante desmedido. Por sentir isso confusamente, a criança crê sentir, no impulso que nela reside, amor por sua mãe. E assim deve ser porque afinal de contas é a sua mãe.”
No seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1957, Camus explicou que compreendia a tarefa do escritor não como uma tentativa de servir aos que fazem a História. Para ele não havia sentido em se curvar ao “Espírito do Tempo”. O compromisso do escritor estava em não esquecer o silêncio daqueles que sofrem, fazendo-o repercutir através de sua arte e com isso abrindo possibilidades de uma comunidade futura onde existiria menos dor.
Cada vida humana tem suas cenas primordiais, seus núcleos obsessivos, suas esperanças. Não há como sintetizar todos os silêncios, mas, se, como diz Raduan, “toda palavra é semente”, torna-se um desafio compreender a urdidura do tempo de colher e cultivar. No fim, estamos mesmo sempre indo de volta para casa, mas não habitamos somente a linguagem que herdamos.
Raduan Nassar. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Raduan_Nassar.jpg
[1] Publicado originalmente como LOPES, Marcos Carvalho. Albert Camus, Raduan Nassar e a textura do silêncio. A voz da Serra. O diário de Nova Friburgo, Ponto de Vista, p. 2 – 2, 04 jan. 2014.