0

Bacon, a filosofia e a práxis

Se a filosofia não tivesse consequências práticas jamais poderia ter influenciado as outras esferas do saber

Gonçalo Armijos Palácios*

            Temos podido apreciar o tipo de leitura que Bacon fez da tradição, uma leitura crítica que o leva a cometer excessos. Mas, o que motivou tais excessos? No caso de Bacon, estamos numa época de transição provocada por muitos fatores. Alguns deles, episódios históricos extraordinários. A descoberta de um novo continente, de civilizações e culturas com conhecimentos e tecnologia avançados e, sem dúvida, a circunavegação da Terra e a verificação da teoria de ela ser esférica, não achatada ou plana. O simples fato de ter se descoberto outro continente devia ter despertado — como de fato despertou — a necessidade de se conhecer esse novo mundo e entender as novas descobertas. Mas o que estava em jogo era, também, conhecer e entender o próprio mundo, nosso próprio planeta e saber por que, por exemplo, os habitantes de lados opostos do planeta não caíam no vazio, isto é, por que ficavam presos na Terra.

            A circunavegação do planeta provava que teorias consideradas absolutamente verdadeiras eram completamente falsas. Muito do que Aristóteles mantinha, portanto, revelava-se inaceitável. Havia a necessidade de entender o mundo de uma outra maneira. De maneira oposta ao modo contemplativo que imperou durante tanto tempo, durante o período dominado pelo pensamento medieval.

            Mas o pensamento medieval deve entender-se como correspondendo a um tipo especifico de vida, a uma forma particular de as pessoas se inserirem na sociedade e no mundo. Modo de vida que estava condicionado por um tipo de sociedade voltada para si e que gerava certas expectativas, certos sonhos. Talvez as expectativas e os sonhos de uma vida sem grandes transtornos. Mas tudo isso muda com a descoberta de novos mundos e a necessidade de se abrir a eles, para conhecê-los, para conquistá-los. A crítica dura que Bacon faz aos gregos deve entender-se, em síntese, como uma espécie de cruzada ideológica. Era necessário acabar com os valores medievais ancorados numa certa interpretação do pensamento grego.

            Com a descoberta da América parece ter surgido na mente e no coração dos homens a necessidade de entender para poder fazer. De conhecer para dominar. E é isso, precisamente, o que estaria num dos aforismos do texto de Bacon: saber é poder. (Ver aforismo III do Novum Organum.) Surge a necessidade de se dominar o mundo, para o qual é preciso entendê-lo. Não venceremos a natureza a menos que a obedeçamos, diz num outro aforismo. E só a obedeceremos se a conhecermos. Para agir, para fazer, para dominar, é preciso, então, compreender. Tudo isso permite que entendamos por que Bacon faz críticas como esta:

De todos os signos nenhum é mais certo ou nobre que o tomado dos frutos. Ora, de toda essa filosofia dos gregos e todas as ciências particulares delas derivadas, durante o espaço de tantos anos, não há um único experimento de que se possa dizer que tenha contribuído para aliviar e melhorar a condição humana, que seja verdadeiramente aceitável e que se possa atribuir às especulações e às doutrinas da filosofia.” (Afor. LXXIII)[1]

Essa afirmação é falsa. Bacon está levado, por sua luta contra a tradição contemplativa que o mundo moderno herdou da época medieval, a fazer uma leitura tendenciosa e equivocada dos gregos. Bacon comete o grave de erro de desconhecer a importância, por exemplo, de um Arquimedes (1287-212 a.C.) que fez contribuições tanto nas matemáticas como na física. A ele devemos, com efeito, um sistema de bombeamento, ainda utilizado, chamado de Parafuso de Arquimedes, além de ter contribuído com princípios fundamentais para a Hidrostática, entre os quais se conta um que leva seu nome: o Princípio de Arquimedes — princípio que teria descoberto enquanto tomava banho, observando que cada vez que nela se submergia fazia transbordar da banheira uma certa quantidade de água. De qualquer forma, a crítica de Bacon é injusta. Explica-se, no entanto, por que foi tão pugnaz nas suas críticas: estava lutando contra as forças do passado que não permitiam o que justamente tinha permitido os pensadores gregos desenvolver suas teorias: a ausência de uma tradição opressiva aliada ao anseio por encontrar a verdade. Verdade que, mesmo nos casos dos gregos, não podia não ter conseqüências práticas. Caso contrário, nem Aristóteles nem Platão teriam escrito textos sobre política e ética. Não há grande filósofo que não pense que o pensamento filosófico não tenha conseqüências práticas. A ideia de que a filosofia é contemplativa é simplesmente isto: um mito.

A leitura que Bacon faz dos gregos mostra, por outro lado, que à medida que as épocas passam e dão lugar a outras, os modos de pensar devem acompanhar essas mudanças e haverá uma luta contra modos de pensar tradicionais. Novas circunstâncias obrigam novas formas de pensar que, por sua vez, motivarão novas formas de agir.


[1] Ibidem.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *