Do consenso universal acadêmico à unanimidade de Nelson Rodrigues não há nem um passo
Gonçalo Armijos Palácios*
A filosofia tem sua história. Não é, contudo, a história de um processo unitário e pacífico. De fato, ela não é una. Não é, noutras palavras, um acúmulo unitário de verdades incontestáveis. Ela é a história de uma luta. Aquela em que na oposição do presente contra o passado decide-se seu futuro. Heráclito criticou Xenófanes e foi criticado por Parmênides. Este, por meio de um argumento respeitoso, mas contundente, seria refutado pelo seu mais ilustre seguidor, Platão. O discípulo de Sócrates, por sua vez, foi objeto de abertas e pugnazes críticas de seu próprio discípulo, Aristóteles.
A análise dos textos dos antigos pensadores mostra que estes apelavam à própria razão e aos recursos da lógica e da retórica — inventadas, desenvolvidas e aprofundadas por eles mesmos. Não havia, até a época de Aristóteles, a autoridade de alguém considerado inquestionável. Homero, sem dúvida, chegou a representar um marco e a ser admirado e respeitado pela beleza poética e grandiosidade de sua obra. Mas não do ponto de vista da verdade. Nunca deixou de ser criticado por aqueles que, como Xenófanes, queriam entender as coisas como elas realmente eram. Xenófanes, Sócrates e Platão coincidem nisto: não era possível acreditar que realmente as coisas tivessem se passado como Homero e Hesíodo afirmavam nas suas obras. Ambos os poetas eram admirados e respeitados, mas não a ponto de serem postos acima da razão e da busca da verdade. Filósofos e sofistas acreditavam que se tratava de debater, de dar razões, argumentos. Isso é justamente o que Bacon com dureza cobra deles: “… a sabedoria dos gregos era professoral e pródiga em disputas — que é um gênero dos mais adversos à investigação da verdade.”[1]
Eles, no entanto, chegaram com o tempo a serem considerados as grandes autoridades e seus pensamentos foram tidos como definitivos e a última palavra para decidir este ou aquele assunto. Aparentemente, qualquer assunto, mesmo aqueles sobre os que nunca se pronunciaram.
Quem estuda retórica ou lógica informal aprende que um erro de argumentação consiste em fornecer como justificativa da verdade de algo o que fora dito por alguém considerado uma autoridade no assunto. Aquela famosa frase “Freud explica” é, no fundo, um exemplo claro desse apelo falacioso à autoridade de alguém considerado o detentor da última palavra em algum assunto ou área de estudo. Parece que aquela frase teve seu período. Não é o mesmo com os escritos de Aristóteles, assim como os de Platão, que foram usados para terminar disputas durante muito tempo.
É curioso como as pessoas têm o hábito de se diminuir e se sentir inferiores, em quase todos os sentidos, a respeito de pessoas que foram grandes no passado. Não podemos duvidar, claro, da grandeza de um Platão e de um Aristóteles. Não obstante, sua grandeza não consistia em saber muitas coisas. Porque, convenhamos, muitas coisas não sabiam. Muito mais do que um cidadão comum chegaria sequer a imaginar. Os dois grandes filósofos, com efeito, tinham uma imagem completamente falsa do mundo e do cosmo. Em relação a isso vêm a propósito estas considerações de Bacon que chamam nossa atenção:
Naquela época era limitado e superficial o conhecimento histórico e geográfico, o que é muito grave sobretudo para os que tudo depositam na experiência. (…) Nada conheciam das regiões africanas, situadas além da Etiópia setentrional, nem da Ásia de além Ganges, e muito menos ainda das províncias do Novo Mundo, de que nada sabiam, nem de ouvido, nem de qualquer tradição certa e constante. E mais, julgavam como inabitáveis muitas zonas e climas em que vivem e respiram inumeráveis povos. As viagens de Demócrito, Platão, Pitágoras, que não eram mais que excursões suburbanas, eram celebradas como grandiosas.” (Afor. LXXII)
Apesar de tudo isso, a despeito do pouco que realmente sabiam sobre o próprio planeta, para não dizer sobre o universo, apelava-se a seus escritos como contendo as mais profundas e inatacáveis verdades — o que os próprios gregos não faziam.
Os medievais, também criticados por Bacon e à diferença do que os gregos fizeram, foram os responsáveis por iniciar a tradição do apelo à autoridade. E, à medida que o poder do catolicismo em Roma crescia, essa autoridade ficava cada vez mais inapelável, sob pena de excomunhão, perseguição, tortura e até morte. A morte na fogueira foi o triste fim de Giordano Bruno e o próprio Galileu teria sofrido fim semelhante.
Lamentavelmente, e muito apesar dos próprios autores de teorias ousadas e revolucionárias, quando suas teorias foram finalmente admitidas, elas foram aos poucos se tornando o que as antigas teorias eram nos tempos em que esses revolucionários as criticavam: doutrinas incontestáveis. Doutrinas incontestáveis por terem chegado a ser a burra unanimidade das academias que ceifa onde mais prejudica, nas mentes dos mais novos.
[1] Aforismo LXXI, grifo no original.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |