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(Canal), Dove il rogo arse (onde o fogo ardeu)!

Severino Ngoenha, Alcindo Nhumaio, Eva Trindade, Carlos Carvalho

O livro 1984 de George Orwell, com a eleição de Trump para a presidência dos EUA, foi projetado ao topo de vendas e atingiu em 2016 o cimo da lista de best sellers do “New York Times” . Esta obra distópica, publicada em 1948, havia sido precedida por umoutra distopia, Admirável Mundo Novo (Brave New World) de Aldous Huxley, publicada em 1931. Huxley e Orwell tinham em comum o receio de ver emergir, na sociedade-mundo, regimes totalitários e de intolerância onde a nossa relação com a verdade seria sujeita a manipulações.

Na relação que estabeleceram entre si, o socialista Orwell elogiou Admirável Mundo Novo do ponto de vista literário, mas o considerou politicamente pouco pertinente. O darwinista Huxley, por sua vez, considerou 1984 menos visionário que o seu próprio livro. Huxley previa para o futuro (os nossos dias) uma ditadura soft, uma sociedade formada de indivíduos clonados, hierarquizados, condicionados; com um punhado de dirigentes mundiais a governar o mundo que até fariam desaparecer Shakespeare (literatura) em nome da estabilidade e de uma pseudo-felicidade. Orwell – que previa para o futuro um regime de controlo (surveillance) híper-autoritário – por sua vez, temia que eles não tivessem sequer necessidade de proibir os livros porque ninguém teria vontade de ler: ele temia que nos escondessem a verdade, afogada num oceano de coisas insignificantes. Enquanto em 1984 o controle das pessoas exercia-se infligindo-lhes punições, em Admirável Mundo Novo ela se exerce diluindo-as no meio de prazeres.

Num número do “Le Nouveau Magazine Littéraire” de Outubro de 2019, Alex Brocas e Aurélie Marcireau perguntam-se “e se os dois tivessem razão”? Se ambos têm razão isso equivale a afirmar a existência, ao mesmo tempo, de uma ditadura e de um sistema de controlo: (i) manipulação do ser humano (todo o ser vivo), (ii) controlo social e (iii) uma polícia (controlo) de pensamento.

Mesmo antes da covid-19, Londres (cidade dos dois distópicos) foi a primeira a introduzir a tecnologia de reconhecimento facial, que torna impossível atravessar a cidade sem ser captado pelas omnipresentes vídeo-câmaras. As mesmas câmaras, cujos algoritmos se valem de captores 3D para medir as caras, são hoje utilizados pela China nos bancos, hotéis e mesmo nas casas de banho públicas. Estes sistemas são capazes de encontrar uma cara humana numa base de dados de dois milhões  de imagens. Na China, registam igualmente, e de maneira automática, as infracções civis e penalizam os infractores. A polícia chinesa utiliza também óculos de sol equipados de um sistema de reconhecimento facial para identificar os suspeitos. O projecto “Sharp Eyes” do governo chinês, com o programa “Police-Cloud” pretende ligar dados médicos, transacções através do cartão de crédito numa base única. A ameaça não está na tecnologia em si mesma, mas no autoritarismo crescente em muitos países. Se essa tecnologia cai em mãos erradas, fornecerá meios de controlo político com os quais a KGB e a CIA juntas nunca sonharam.

Edward Snowden denunciou já a hiper-espionagem americana do multi-lateralista Barack Obama contra todos os governos, inclusive dos seus aliados (subordinados). Os big data, exemplificados pela Cambridge Analytica, demonstraram a capacidade de controlo e manipulação de vidas, de políticas, de indivíduos e de Estados (desde pequenas até grandes nações e das emergentes às consolidadas democracias do mundo). Esta tendência exacerba-se hoje com a vontade, em nome da covid-19, de rastrear o conjunto da população. É o que filósofos, como Agamben e Žižek denunciam como a re-emergência de tendências fascizantes e aniquiladoras das liberdades dos cidadãos, outrora previstos nas duas distopias supracitadas.

Orwell e Huxley nunca foram tão actuais e o nosso mundo parece muitas vezes misturar os seus universos. Trata-se, não simplesmente de Trump e os trumpistas (Bolsonaro e símiles), mas também de Xi Jinping (que se erigiu novo imperador vitalício da China) e dos xi jipinguistas (Kim Jong-un, na Coreia do Norte) e de Putin (que não se diz, mas novo Czar da Rússia) e os putinistas (Lukashenko, presidente da Bielorrússia), que com a manipulação da Constituição se perpetuam no poder.

A mesma veleidade de se eternizar na liderança, usando até manipulações putinistas, manifestou-se também nos presidentes da nossa segunda República. Rogamos a todos deuses (politeisticamente, conhecidos e desconhecidos) e aos antepassados (nossos e dos outros) que ela não venha ao espírito do nosso actual presidente que, com a maioria esmagadora e anti-democrática que possui no parlamento, poderia, putinianamente (de forma legal, mas imoral), mudar a Constituição e, assim, concorrer para um terceiro e até quarto, quinto, sexto, (…) mandatos, até que a morte o separe dos moçambicanos, ou do que deles restar…

Ditadura soft ou regime de controlo não passavam para Huxley e Orwell por nenhum fogo. A distracção é grave porque o fogo é um verdadeiro separador de águas civilizacional. A sua descoberta, muito, muito antes da revolução industrial dos ingleses (que lhes permitiu a hegemonia na história-mundo até à rendição de Churchill à superioridade americana em 1941), foi, sem dúvida nenhuma, a primeira e a maior revolução civilizacional. Ela trouxe ao homem a possibilidade de cozer os alimentos, de aquecer as casas, mas também sempre comportou o perigo de queima (por isso, todas as cidades têm bombeiros) de si e dos outros.

Em Maputo, atrás da embaixada americana (não o bunker da marginal, mas a da Kenneth Kaunda) onde a potência e a prepotência se autorizam a fechar vias públicas, existe o restaurante “Campo de Fiori”, nome de uma famosa praça no centro de Roma, situada entre a Fontana di Trevi, a Piazza Venezia – onde Mussolini pronunciava seus discursos fascistas -, a napoleónica embaixada francesa e o centro jurídico-canónico da Igreja Católica (sacra rota). Foi no meio deste conjunto modernista que, Giordano Bruno, no advento mesmo da modernidade, foi queimado vivo por defender suas ideias (poligenismo) contra as doutrinas então reinantes. Na lápide, está escrito “QVI, DOVE IL ROGO ARSE” (aqui, onde o fogo ardeu). Reza a história que  os habitantes foram depositar flores e desde então este tornou-se o lugar central de comércio de flores da cidade.

A distracção e a negligência de Huxley e Orwell em volta da importância do fogo são anacrónicos pois, desde Bruno, aqueles que pensam diferente ou que ousam ter ideias próprias são queimados ‘vivos’ ou se lhes queimam, sofisticadamente, com o falso progresso (telenovelas, facebooks, twitter e outros) o cérebro, a consciência e a liberdade de pensamento.

Discordar – ainda que seja uma ação implícita no conceito de Democracia –  leva a decisões de queimada, assassinato políticos e ameaças de morte, quando finalmente alguém pensa diferente e se insurge contra o dolarcratismo reinante. Foi também uma metáfora de ‘queimada política’, ceifar os Raul Domingos –  “capim alto” por discordarem democraticamente do ‘pai’ (não democrático) da Democracia; e é também uma metáfora de fogo a excomunhão e heretização daqueles que, no partido que se auto-intitula democrático, ousam questionar a simangocracia.

Que dizer dos nossos parlamentares (que no Admirável Mundo Novo, Huxley chamaria alphas, indivíduos colocados no cimo da sociedade), intelectualmente emasculados, que para ali estar, aceitam abdicar, no altar das obediências partidárias (que na verdade são estatuto, privilégios e mordomias), das suas prerrogativas de pensamento próprio e de defensores dos interesses do povo; assim, mas silogística (entimema) e cartesianamente, juram aos big-brothers (que em 1984 é a cara de bigodes, inspirado em Stalin): “non cogito, ergo parlamentare sum! (não penso, por isso sou parlamentar).

Então, que o fogo “arse” nos escritórios do Canal de Moçambique é no fim das contas apenas mais um episódio, como o são a prisão e o silenciamento de jornalistas, de músicos (Pedro Langa dos Gorhwane, Azagaia), o espancamento dos fazedores de opinião (José Macuane, Ericinio de Salema, Matias Guente), ou até o assassinato de militantes anti-corrupção (Siba-Siba, Cardoso) e pró-democracia (Anastácio Matavel) –todos eles culpados do que em 1984 se evidencia como o primeiro dos crimes: pensar, que consiste em reflectir fora dos quadros fixados pelo regime.

Já no século XVI, La Boétie, no Discurso sobre a Servidão Voluntária, se insurgia contra o nosso medo de ser livres que se transmuta em abúlica e sistemática obediência e cauciona regimes monárquicos, oligárquicos e até ditatoriais. No século XIX, o filósofo Henry David Thoreau, contra as políticas americanas de escravatura e de guerras contra os vizinhos (o México), defendia a desobediência civil e, de certa maneira, não o direito mas o dever de resistência. Nunca devemos esquecer que a Resistência foi o ponto mais forte do nosso repúdio contra os velhacos que Max Frisch chamou de “incendiários”.

Contra um dos principais dogmas da economia liberal, Fernando Lima usou a sua posição abrindo os escritórios do Savana ao seu concorrente, para Canalizar (criar as condições de possibilidade da) a nossa Democracia. As associações da sociedade civil manifestaram publicamente o seu repúdio e deram a cara, como também o fizeram aqueles tantos – mesmo se cobardemente como é comum entre a elite moçambicana –, que ofereceram os seus préstimos a Matias Guente e ao Canal.

Contudo, o auge e a determinação da resistência foi a prontidão com que os funcionários do Canal, quais charlies, contra os fanatismos da nossa religiosidade pecuniocrata, ousaram perverter os corbusianos princípios arquitectónicos do uso de espaços e transformar o quintal em sala de produção, positivando o pobre ditado atribuido a Machiavelli: o fim (a liberdade de imprensa e de opinião) justifica os meios (o lugar, os computadores).

A nobreza da missão (Eça de Queirós) não se prende ao lugar – como são exemplo os trabalhos do Cardoso numa Garagem, de Langston Hughes num elevadore de Du Bois numa barbearia, ou os lugares incógnitos do Brado Africano, dos escritores jornalistas do O’clock, em Abadani (Nigéria) ou dos panfletistas da Frelimo nas zonas libertadas –, mas ao dever existencial da doxa (opinião), como condição da tolerância e democracia como defenderam, mordicus (com determinação), Zola no caso Dreyfus, Wole Soyinka pela liberdade de criação e expressão na Nigéria, ou Mudimbe no Zaire de Mobutu.

É preciso recordar aos incendiários que a democracia pressupõe, não a convergência monolítica de ideias e de opiniões (doxa), mas a sua dialéctica tolerante (Locke e Voltaire): “eu não estou de acordo contigo mas vou bater-me para que tenhas o direito de expor as tuas opiniões”.

Precisamos do fogo! Porém, ele continua a arder entre nós, em lugares errados: queima e arde em Mocímboa da Praia e no centro de Moçambique; arde muitas vezes em pneus que queimam jovens e adolescentes numa justiça feita “com as próprias mãos”; queimou e ceifou vidas em Beirute (Líbano), com a responsabilidade e cumplicidade moçambicanas ainda por esclarecer, ou ainda queimou o paiol e, para cúmulo, o ministério da Agricultura nos tempos auges do guebuzianismo triunfante. Queimam-se também inúmeras florestas pelo Moçambique afora e, agora, também redacções de jornais.

Em contrapartida, o fogo não hlavika (acende) para milhões de moçambicanos que dele necessitam; por falta ou de lenha, de fósforo, de petróleo, de gás ou de tudo ao mesmo tempo. E quando têm tudo isso, ainda lhes falta o essencial, a comida. É o justo contrário do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz  (sarcasticamente respondido pelo professor metafísico Pangloss no “Cândido” de Voltaire e ironicamente retomado por Huxley).

A questão não são as queimadas nem os incêndios, mas o que se queima e/ou se incendeia. Incendiar parlamentarismos, partidocratismos, opulenciosidades, dolarocracismos, pecuniocratismos é do que Moçambique e o seu futuro precisam e têm premente necessidade. Iluminar cérebros, espíritos, abertura, tolerância é também do que Moçambique, hic et nunc, necessita. Acender fogueiras para cozer alimentos e, ao som do tambor, que soa igual e diferente (dialéctica e tolerância), abandonarmo-nos ao craveirinhiano “karingana wa karingana”, com fogueiras, em que homens, mulheres e crianças se reúnam, não para distopias, mas para sonhar juntos futuros possíveis e desejáveis (‘utopia’ como verdade de amanhã, Victor Hugo) – é do que nós verdadeiramente precisamos; é o nosso mundo desejável!

Contra os incendiários e pirómanos, que consideram o pensamento como o primeiro e o maior dos crimes (cf. “1984”), Natacha Polony criou, em 2015, o comité Orwell, um laboratório de ideias que tem por objectivo, fazer ouvir voses diferentes nas paisagens midiáticas demasiado uniformes, e defende que, falar da liberdade só tem sentido se for para dizer às pessoas o que elas não têm vontade de ouvir.

O Canal tem feito deste imperativo democrático a sua missão e, por isso, merece de todos nós o maior dos respeitos.

O corpo de Giordano Bruno  foi queimado mas, o pensamento dele, tornou-se o paradigma da liberdade de pensamento.

ensaio de: Severino Ngoenha, Alcido Nhumaio, Eva Trindade, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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