O projeto Bota a fala surgiu de um desafio feito pelos estudantes da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Um desafio diferente, ou melhor, uma provocação criativa que gera sentido. Este desafio se “fia” numa lealdade, na confiança, numa” fé” que é a chave pedagógica de qualquer educação que valha a pena. Afiamos nossas palavras em comum, em diálogo, que retece os sentidos. Porém, seguindo o encontro, houve um movimento, um desvio, uma inversão na direção da ação, uma abertura que desconstrói e redescreve. Explicar em que circunstâncias isso aconteceu ajuda a entender como a aproximação com o hip-hop me des-a-fia e como este projeto pretende contribuir para o desenvolvimento de uma educação (Paideia) democrática.
Neste breve texto contextualizo este encontro com meu trabalho anterior de pesquisa em relação à canção popular e de identificação e pesquisa da filosofia pragmatista norte-americana. Deixo para futuros textos narrativas que se vinculam a estas, (1) explicando como a convivência na UNILAB com uma perspectiva de conhecimento que se solidariza com questões raciais fez com que tomasse estas interrogações de modo pessoal, redescrevendo minha história familiar; e (2) como o pragmatismo se aproxima do hip-hop (meus estudantes compreenderam isso através de alguns minicursos em que tratei do pragmatismo profético de Cornel West).
Assim que comecei a trabalhar na UNILAB criei um projeto de extensão sobre canção popular e ensino de filosofia. Esta era uma maneira de trazer para universidade parte de uma pesquisa que realizo e que já motivou diversos ensaios e o livro Canção, Estética e Política: ensaios legionários. Já escrevi sobre canções de Noel Rosa, Caetano Veloso, Cazuza, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana etc. Mais importante do que um grupo ou cantor específico tentei pensar sobre o lugar privilegiado que a canção ocupa na cultura popular do Brasil e a “acusação” de que o rock brasileiro dos anos 80 seria já parte de uma “degeneração” massificadora que resultou, a partir dos anos 90, em uma série de vereditos apocalípticos sobre o fim da MPB ou da canção etc.
De modo geral, desenvolvi uma narrativa que mostra que os roqueiros dos anos 80 mantiveram em seu discurso o tipo de Utopia Lírica que é uma característica marcante da MPB. Contudo, a crise cultural e política da Era Collor – a crise do mercado fonográfico, a descentralização dos centros de produção musical, as medições de audiência ao vivo, fazem parte de uma série de fatores que fizeram com que as canções que se aproximavam mais do desejo popular ganhassem mais e mais espaço – mostrou que as narrativas esperançosas e, em certa medida épicas, sobre a transformação do país em horizontes democráticos, fracassaram. Este fracasso repercutiu numa grande dificuldade ou mesmo ausência de sentido na descrição do país feita pela chave lírica: a partir de então, as canções que tinham um sentido mais político tendiam para a prosa, aproximavam-se do rap.
Essa é uma tese geral e por isso reducionista. Do reducionismo provém seu apelo e utilidade. De todo modo, na medida em que esse veredito de aproximação das canções políticas do rap e da prosa se mostra mais justificado, sentia dificuldade maior de escrever nessa direção. Isso porque sempre tratei das canções como ouvinte e não como alguém que ia para shows ou tinha acesso a performances ao vivo. A audição descontextualizada, separada da performance e dos grupos que sustentam a autenticidade de um estilo, permite um tipo de distanciamento e de distorção confortável. No entanto, o hip-hop não funciona a partir deste tipo de posição teórica. Sempre me pareceu um estilo vinculado a um modo de vida, que não poderia ser abordado “de fora”.
Na UNILAB temos uma rica convivência entre alunas e alunos brasileiros com alunas e alunos de diversos países da África lusófona, principalmente de Guiné-Bissau. Quando desenvolvi atividades sobre a canção popular brasileira consegui a participação de um bom número de estudantes. Contudo, a recepção era distinta, já que o que para as/os brasileiras/os era uma complexificação de algo que já conheciam, para os africanos muitas vezes era uma primeira audição. Ora, isso trouxe uma pergunta: existiria nos países da África lusófona algum estilo musical que se aproximasse do lugar simbólico que a MPB teve/tem no Brasil, ou seja, que tomasse para si a necessidade de representar seu pais? A resposta foi “sim”, o hip-hop faz isso!
O hip-hop não era presença distante, meramente auditiva para a maioria dos estudantes guinenses, mas sim uma forma de vida e expressão. Isso era evidente no modo de vestir. A internacionalização da cultura hip-hop tornava turva a ideia de “autenticidade”, e a descolonização talvez não pudesse fugir da rima com a palavra americanização. Para alguém que, como eu, estuda a filosofia norte-americana, que parte de uma perspectiva pragmatista o hip-hop não é um objeto estranho. Basta ver o lugar paradigmático que o rap tem na estética pragmática de Richard Shustermam ou o CD de Hip-hop gravado por Cornel West como tentativa de aproximar-se dos jovens.
Em verdade, logo que percebi essa preferência pelo hip-hop comentei com alguns alunos como este estilo em muitos casos propunha uma “filosofia de vida”, e comentei alguns textos sobre este estilo musical e sua relação com a filosofia. A convergência parecia frutífera. Já que existe um grupo de Hip-hop formado por estudantes na UNILAB de Redenção, era natural fazer algo assim também no Campus dos Malês. Alguns estudantes me cobraram isso…
Mas não temos equipamento, não temos condições técnicas, e agora? Devolvi a provocação: formaríamos o grupo com as condições do contexto, no esquema faça você mesmo. E é isso! O desafio inicial era de que, em um mês de ensaios, preparassem uma apresentação de recepção para os calouros. No primeiro ensaio já fiquei surpreso e esta sensação se prolonga… o sentido do Bota a fala está hoje mais nas palavras de seus componentes do que em algo que pudesse “teorizar”.
Filosofia como modo de vida, botando a palavra em praça pública para o jogo de pedir e dar razões. Razão com e no compasso do beat, rimas do pensamento dando sentido ao aqui e inventando horizontes.
Começamos agora a ensaiar novos passos, conversando sobre alguns textos, procurando novas pessoas para conversar e ideias para rimar. Filosofia sem inveja de Homero…
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