Experiências, redes e circulação ideias em Angola

Luís Kandjimbo*
Numa das nossas conversas anteriores, sublinhámos o facto de o conhecimento que a Geração Literária de 48 tinha do Movimento «Harlem Renaissance» não ser um mero acaso. Por conseguinte, o Pan-africanismo literário de Agostinho Neto (1922-1979), António Jacinto (1924-1991), Viriato da Cruz (1928-1973), Mário Pinto de Andrade (1928-1990) e outros membros dessa geração não surgiu do nada. Entretanto, já alguns leitores tinham manifestado a sua sede de saber mais, quando ilustrámos o diálogo transatlântico, da América para África, através do registo autobiográfico de Langston Hughes (1901-1967). Por essa razão, entendi que, antes de mergulhar na leitura dos textos dos membros do Centro de Estudos Africanos de Lisboa, seria útil explorar o campo da negligenciado da história das ideias em Angola. O problema reside na necessidade de determinarmos os processos de recepção das ideias o Pan-africanismo literário. É o que faremos, dando especial atenção aos efeitos da presença de Afrodescendentes e do protestantismo britânico e norte-americano, no território angolano.
Coincidentes causalidades
Contrariamente ao sentido da proposta formulada na conversa anterior, segundo a qual procederíamos à leitura da ensaística dos principais autores da segunda geração de pan-africanistas dos PALOP, julgo ser necessário compreender, em primeiro lugar, a articulação das fontes e dos canais de circulação, bem como os processos de recepção das ideias que se vão transformar em temas literários. É que o processo de decantação de ideias e a formação da consciência não são obras do acaso. Já fizemos referência a algumas dessas fontes e canais. No entanto, há circunstâncias em que as fontes endógenas e exógenas têm utilidade, simultaneamente. Podemos ilustrar a coexistência de fontes endógenas e exógenas com uma coincidente causalidade, a chegada a Luanda, em 1887, de duas entidades norte-americanas, bem como pensamentos e acções anti-coloniais, nas primeiras décadas do século XX: 1) A ocupação do posto de cônsul dos Estados Unidos da América pelo escritor Afrodescendente, Henry Francis Downing (1846-1928); 2) A missão da Igreja Metodista Episcopal dos Estados Unidos da América, dirigida pelo Bispo William Taylor (1821–1902); 3) Arrolamento dos reverendos protestantes metodistas Agostinho Pedro Neto (1896-1946), angolano, pai de Agostinho Neto, e Robert Shields (1866-1936), norte-americano, e Abel Silva, cunhado do reverendo angolano, no Autos de Averiguações sobre os Acontecimentos de 1922, mandados instaurar pelas autoridades policiais coloniais contra o escritor, jornalista e advogado provisionário, António de Assis Júnior (1878-1960).
Portanto, não podem ser ignorados os possíveis nexos entre a presença de missionários protestantes norte-americanos, a elevação dos níveis de consciência política de um escritor negro norte-americano, após a experiência vivida no contexto da situação colonial. Tais nexos configuram hipóteses de concausalidade dos processos de socialização para gerações inteiras do espaço transatlântico.
Um cônsul negro norte-americano em Luanda
Ora, no ano em que o núcleo fundador dirigido pelo Bispo William Taylor se instalou em Luanda, o presidente norte-americano tinha nomeado como cônsul para ocupar o posto de Luanda, o primeiro diplomata norte-americano Afrodescendente. Trata-se de Henry Francis Downing, que era também escritor, nascido na cidade de Nova York, em 1846. Aos vinte e dois anos de idade, ingressou na Marinha dos EUA e depois da Guerra Civil, viajou pelo mundo, tendo vivido na Libéria, durante três anos. Na época, era Presidente da República, seu primo, Hilary R. W. Johnson (1837-1891), que já tinha nascido no continente. Terminada a sua aventura de percorrer o mundo, regressou aos EUA, em 1872. Nos três anos seguintes, continuou a prestar serviço à marinha de guerra.
A partir dos anos 80 do século XIX, integrou as fileiras do partido democrata, em Nova York. Foram os serviços prestados à campanha do eleito presidente norte-americano, Grover Cleveland (1837-1908) que sustentaram a decisão de o compensar com a nomeação para o posto de cônsul em Luanda. Os relatos sobre a breve passagem de Henry Francis Downing pela diplomacia são escassos. A minha principal fonte é o artigo de Brian Russell Roberts, «Lost Theaters of African American Internationalism: Diplomacy and Henry Francis Downing in Luanda and London» (Teatros Perdidos do Internacionalismo Afro-Americano: Diplomacia e Henry Francis Downing, em Luanda e Londres), publicado pela revista «African American Review», em 2008.
Experiência angolana
A experiência angolana, enquanto cônsul dos EUA em Luanda, de 1887 a 1888, acabou por constituir fonte de inspiração de Henry Francis Downing para a sua participação activa do Congresso Pan-Africano de 1900, realizado em Londres. Aliás, foi o uso da expressão «Antigo Cônsul dos EUA, em Luanda», título com o qual passou a identificar-se, que me chamou a atenção. No relatório do Congresso Pan-Africano de 1900, tal identidade não é apenas um simbolismo. É igualmente uma referência legitimadora.
No dizer de Brian Russell Roberts, quando chegou a Angola, Downing observou o que acontecia nessa região da «África Ocidental», dois anos depois do Rei Leopoldo II da Bélgica (1835-1909) e Henry Morton Stanley (1841-1904). terem estabelecido o Estado Livre do Congo, «os países europeus esvaziarem terras férteis dos seus produtos e os seus cidadãos enriquecerem.» Era a corrida aos territórios coloniais com fronteiras artificialmente demarcadas.
Consta que entre as cartas que endereçou ao Departamento de Estado, Downing tinha manifestado o interesse de navegar pelo rio Congo ou Zaire, uma vez por ano. A recusa foi uma decepção. Quem leu as cartas, tal como Brian Russell Robert, refere a existência de «passagens que seriam mais adequadas a uma obra literária do que a um despacho consular.»
A identidade de Henry Francis Downing passou a ser suportada por uma forte memória transatlântica para a qual contribuiu a experiência angolana. Neste sentido, percebe-se o alcance que tem o reiterado uso da expressão «Antigo Cônsul dos EUA, em Luanda». Granjeava, por isso, o respeito que podia justificar a sua designação para ser membro da Comissão Executiva da Associação Pan-africana.
Downing e o Congresso de Pan-africano
Em 1895, Downing, já com a sua segunda esposa, fixou residência em Londres, durante cerca de vinte e dois anos. Distinguiu-se pela sua actividade literária, escrevendo textos dramáticos e dirigindo recitais. Apesar da escassa informação sobre a actividade política de Henry Downing, o livro de Oruno D. Lara, «La Naissance du Panafricanisme. Les Racines Caraïbes, Américaines et Africaines du Mouvement au XIXe siècle » (O Surgimento do Panafricanismo. As raízes Caribenhas, Americanas e Africanas do Movimento no Século XIX, fornece importante informação, obtida em fontes arquivísticas primárias, que permite articular a experiência de Downing e os seus contributos para o nascente movimento pan-africanista, em 1900.
No início do século XX, Londres era uma placa giratória para as causas filantrópicas africanas. O nome do Henry F. Downing, o «antigo cônsul dos Estados Unidos em Loanda», figura na lista dos signatários e delegados que se encontravam em Londres para a Conferência, alguns dos quais eram membros residentes da Associação Africana. Destacam-se os seguintes: F.E.R. Johnson, antigo Ministro da Justiça da Libéria; Benito Sylvain (1868-1915), ajudante de campo do Imperador Menelique da Etiópia; Henry Sylvester Williams (1869-1911), a personalidade central na organização do Congresso. Entre os membros da Comissão Executiva do Congresso estava Downing.
Nessa altura, tal como concluiu Oruna Lara, o termo «Pan-africano», não tinha sido utilizado durante a fase preparatória. Foi formalmente usado numa carta datada de 11 de novembro de 1899, escrita por Williams a J.M. Bourne, membro da Associação Africana.
A notoriedade pública de Henry Downing inscrevia-o no campo do poder simbólico em que tinham lugar reservado autores como W. E. B. Du Bois (1869-1963), James Weldon Johnson (1871-1938) e Carter G. Woodson (1875-1950).
Robert Shields, um missionário americano
O missionário da Igreja Metodista Episcopal, Robert Shields, nascido na Irlanda em 1866, chegou a Angola em 1887, integrando o núcleo fundador dirigido pelo Bispo William Taylor (1821–1902). Desse núcleo fazia parte o suíço Héli Chatelain (1859-1908) que viria a ocupar, igualmente, o posto de cônsul dos Estados Unidos da América, em Luanda. Colocado inicialmente na missão do Quéssua, em Malanje, Robert Shields mudou-se para Luanda em 1902. Apesar de ter falecido em 1936, os restantes membros da sua família foram missionários metodistas em Angola e no Zimbabwe, até à década de 60 do século XX. Mas durante as duas primeiras décadas, as autoridades coloniais portuguesas mantinham relações conflituosas com as missões protestantes, acusando-se de sistemáticas acções de «desnacionalização» dos angolanos. Foi sob o patrocínio deste missionário de origem irlandesa que, em 1918, se consagrou como pastor da Igreja Metodista, Agostinho Pedro Neto, um dos primeiros reverendos nativos, tendo iniciado a sua carreira como professor em Kaxicane e Luanda. Desenvolveu uma intensa actividade pastoral na região dos Dembos, até à sua morte, em 1946.
Memória e hermenêutica
As memórias das experiências transatlânticas são partilhadas por todos os Africanos do continente e as Diásporas. De igual modo, por aqueles que pelos Africanos e Afrodescendentes cultivam empatia. Há demonstrações inequívocas de empatia cognitiva que, estruturalmente, tem fundamentos históricos. Donde, o funcionamento das redes e circulação ideias, formando uma malha que é instrumental para os diferentes mecanismos de socialização, encontra nos textos literários um dos seus mais potentes veículos. A circulação de ideias e a malha de mecanismos de socialização são dispositivos institucionais concretos, compreendendo as comunidades familiares, grupos e gerações literárias, associações culturais, igrejas, escolas e universidades.
Essa memória transatlântica não é monopólio do chamado Norte Global. Fica-se com essa ilusão, se não houver capacidade para explicar a razão por que a experiência ontológica dos Afrodescendentes é susceptível de estudo no âmbito dos chamados «Black Studies» ou «African American Studies», «Africana Studies», ou ainda «Afrocentricity Studies». O que está em causa não é a «raça». A ideia de Pan-africanismo literário que vamos identificar em textos como os de Agostinho Neto (1922-1979) e Viriato da Cruz (1928-1973), por exemplo, resultará sempre daquilo a que o professor universitário e crítico camaronês, Ambroise Kom, designa como «fraternidades literárias do mundo negro». Para Ambroise Kom, essas «fraternidades literárias» podem consistir em isotopias na tematização do racismo, enquanto efeito da escravização dos Africanos e do colonialismo. Além de não se esgotar aí, a interpretação e identificação dos sinais dessas «fraternidades literárias», não tem sentido único. As obras africanas devem merecer mais atenção.
Ambroise Kom chega a essas conclusões após uma longa actividade hermenêutica da obra de dois escritores Afrodescendentes, o norte-americano Chester Himes (1909-1984), figura do movimento «Harlem Renaissance», que com uma vasta obra constituída por mais de uma dezena de títulos, ganhou notoriedade na Europa, e o ficcionista, poeta e ensaísta barbadiano, George Lamming (1927-2022).
Conclusão
Numa perpectiva comparada de largo horizonte, mais facilmente se compreende a função das redes de circulação de ideias de que fazem parte os mecanismos primários e secundários de socialização. Constituem causas das dinâmicas culturais e literárias que têm lugar na sociedade angolana, no que diz respeito à recepção das ideias pan-africanistas. No plano interno, quisemos evidenciar o papel das igrejas protestantes norte-americanas. Já no plano externo, a experiência vivida por Henry Francis Downing, a sua qualidade de diplomata, permitiu formar um ponto de vista acerca do que tinha passado a ser o colonialismo europeu moderno, ao ter sido confrontado com a mesma condição de escravizado, a que por contingências históricas estavam sujeitos os angolanos. Aí está o arquétipo da desumanização que se universaliza através da apologia da luta pela dignidade humana. Na literatura, essa apologia transforma-se em «fraternidade literária» Portanto, não há trivialidade nenhuma na construção de textos poéticos, narrativos, dramáticos ou ensaísticos que tematizam a negação daquele arquétipo, elevando a dimensão ontológica dos Africanos como humanos. Assim, reiteramos aqui a proposta de leitura já formulada na conversa anterior. Vamos revisitar os textos de alguns em busca do Pan-africanismo literário.
Henry Sylvester Williams
William Taylor, Bispo da Igreja Metodista
HÉLI CHATELAIN



HENRY FRANCIS DOWNING
James Weldon Johnson
* Ph.D. em Estudos de Literatura;
M.Phil, em Filosofia Geral
