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Celebrando o fim do neoliberalismo

entrevista de 2008 para a revista Desafios do Desenvolvimento do IPEA


Com uma oratória afiada, gestos largos, muitas caretas e uma voz de cantor de blues, o americano Cornel West, de 55 anos, conquista facilmente platéias – sua técnica de discurso foi aperfeiçoada por anos como pastor da Igreja Batista Americana. Hoje professor de História da Religião na Universidade de Princeton, West é um dos mais influentes intelectuais dos Estados Unidos quando o assunto é a luta pelos direitos civis pós-1960, especialmente na defesa das minorias étnicas. Ele já foi professor em Yale, Harvard e na Universidade de Paris, algumas das mais prestigiosas instituições de ensino superior do mundo. Sua saída dessas universidades quase sempre foi marcada por desentendimentos. Em Yale, por exemplo, foi preso por participar de protestos contra o apartheid na África do Sul, e anos depois saiu de Harvard chamando o ex-presidente da instituição, Lawrence Summers, de “o Ariel Sharon do ensino superior”, numa referência à prática de discriminação. Ainda bastante jovem, foi militante do movimento negro nos anos 1960 – fã de Malcom X e os Panteras Negras – e continuou a aproximação com organizações radicais como o grupo de defesa dos direitos dos animais Peta, cujas ações freqüentemente causam controvérsia. Com uma agenda mais radical que a esquerda tradicional americana, ele se define como um “socialista não-marxista”. Filiou-se ao pequeno Partido Democrata Socialista dos Estados Unidos, do qual hoje é um dos diretores honorários, apesar de atualmente apoiar (criticamente) o candidato a presidente do Partido Democrata, Barack Obama, de quem é amigo pessoal. Por ocasião dos ataques de 11 de setembro de 2001, disse que “os brancos viram ali como era ser negro nos Estados Unidos: sentir-se inseguro, sujeito à violência aleatória e odiado por ser quem são”. Autor de mais de 20 livros e objeto de quatro outros, além de um filme documentário, Cornel West continua inflamando platéias no mundo em sua busca por uma democracia cada vez mais participativa, que inclua as pessoas à margem do crescimento econômico.

Desafios – O senhor celebrou o fim do neoliberalismo. Por que ele acabou e o que temos a celebrar?
Cornel West – Ele entrou em colapso porque os resultados foram devastadores, seu fracasso inegável. O neoliberalismo se propôs a tirar as classes mais baixas da pobreza, não o fez; propôs-se a criar orçamentos mais balanceados e responsáveis, e não o fez; propôs-se a liberar a América Latina, colocá-la em par com o resto do mundo, mas apenas a subordinou mais à economia global. Aliás, o resultado mais devastador do neoliberalismo está na América Latina.

Desafios – Que sistema o senhor vê emergindo disso?
West – Estamos numa transição. Podemos ver o colapso relativo, mas não conseguimos ver ainda o que virá, por isso é tão fascinante esse momento. Parece-me que o ministro Roberto Mangabeira Unger tem uma visão sobre isso, e fico feliz que o governo do presidente Lula tenha tido a idéia de trazê-lo para dentro. Uma vez que nós percebamos as limitações do sistema neoliberal, concluiremos que temos de fazer algo, não só em termos de protesto, mas de reconstrução, reinvenção de mercados e do Estado. Será uma mudança profunda. Fala-se da diferença entre a era de protestos e a era de revoluções. Não parece que estamos em uma época de revoluções, e há relativamente pouca gente protestando.

Desafios – Como acontecerão as mudanças?
West – Não se têm tantos protestos no Brasil porque o país tem um presidente progressista. Quando vim aqui há 30 anos, eu estava interessado na Teologia da Libertação, no movimento do padre Leonardo Boff contra a ditadura militar. Nessa época, Lula protestava, fora do governo, de braços dados. Agora eu volto e o protestante está à frente do Estado. Ele ainda é progressista, mas está numa situação diferente. Não está mais na rua, com o Partido dos Trabalhadores, organizando. Ele é o presidente. Ao mesmo tempo em que ele sabe das limitações do neoliberalismo, ele sabe que tem de trabalhar com isso, brigar, se adequar. Ele não pode passar por cima de um sistema vigente porque a história não funciona assim. É por isso que digo que o colapso neoliberal é relativo. As severas limitações foram reveladas de uma maneira inegável. O que não quer dizer que se comece uma nova ordem do dia para a noite. Lula ainda tem de trabalhar muito com o Império Americano.

Desafios – Quais as chances de Barack Obama mudar esse quadro?
West – Não sei. Sou um apoiador crítico de Obama, eu o conheço muito bem, tivemos momentos muito bons em Illinois, e o apoiei nas primárias em vários estados. Fazia seis discursos por dia de apoio em Iowa, na Carolina do Sul, no Texas e em Illinois. Apesar de trabalhar bem próximo, eu sou crítico. Mas sei que ele é o melhor que o Império Americano tem a oferecer no momento, não há dúvidas em relação a isso. Mas, se esse melhor é bom o suficiente, especialmente quanto aos nossos irmãos e irmãs da América Latina, não estou convencido. Vou votar nele, mas também colocarei bastante pressão em relação às políticas para o continente.

Desafios – E quanto às políticas que ele propôe sobre minorias, especialmente a população negra?
West – Não acho que ele goste muito de falar sobre minorias. Ele gosta de falar mais sobre classe média e trabalhadores. Ele fala de gente pobre algumas vezes, mas não o suficiente. Ele tende a se distanciar do assunto minorias, para não ser tachado de “presidente de minorias”. Eu consigo entender isso. Ele precisa de gente como eu, que fala sem vergonha da situação dos negros e da supremacia branca. Alguém que fale duro sobre patrões exploradores, plutocratas irresponsáveis, oligarcas sem transparência. Porque é a verdade e eu tenho de me expressar sobre ela. Mas, na política, não se pode falar esse tipo de verdade. Eu reconheço a responsabilidade dele, que é diferente: um governo mais progressista. Ele respeita a minha função e eu a dele. Por isso somos amigos.

Desafios – Qual a sua opinião sobre a políticas de cotas em universidades públicas no Brasil?
West – De um lado, nós, dos Estados Unidos, temos de reconhecer que não podemos impor nossas concepções de supremacia branca no Brasil. Este país ainda tem o legado da supremacia branca, mas isso toma outra forma. Então, eu tenho de ser humilde o suficiente para aprender e ouvir os meus irmãos e irmãs brasileiros sobre o assunto. Mas, por outro lado, eu tenho de fazê-los ter certeza de que os brasileiros não estão em negação sobre a herança da supremacia branca. Porque só o que isso faz é esconder e camuflar o sofrimento das pessoas pobres. Essa história toda de miscigenação, democracia racial e tudo o mais que os brasileiros repetem não existe… Aqui se vê um número desproporcional de negros entre os pobres ou entre os presos, por exemplo. Então, eu quero ter certeza de que brasileiros e americanos não esqueçam dessa herança de uma dominação dos brancos – todos devem se opor e combater isso. E penso que é algo muito positivo que o Brasil esteja atacando esse problema com um programa de ações afirmativas. Porque, quando se vai para o alto da sociedade brasileira, onde estão os ricos e poderosos, não se vêem muitos negros, não é? Olha-se para cima e se diz: “Ei, é tão branco aqui!”. Isso não é o legado da dominação branca?

Desafios – O senhor diz que um dos problemas de estender a democracia é que a policia e o sistema prisional precisam ser repensados…
West – Deve haver transparência da polícia e uma reforma prisional. Como fazer isso? Uma das maneiras é a criação de polícias comunitárias. Precisamos de mais policiais vindos da própria comunidade, para que as pessoas sintam que têm uma relação próxima com a polícia, que ela não seja vista como vindo de fora, hostil. Os criminosos existem em todas as cores, é fato.

Mas, ao mesmo tempo, quando se tem uma polícia como nos Estados Unidos, onde a maioria dos oficiais vem de fora, eles desrespeitam as pessoas em vez de protegê-las. E quando há essa sensação entre as pessoas de que não há nenhum controle sobre o poder da polícia na sua própria comunidade, é devastador. Mas há uma diferença de percepção, esse medo não existe para a classe média branca. Eles vêem a polícia e sorriem: “Oh, eles estão nos protegendo”. E os negros pobres vêem e pensam: “Eles estão vindo nos pegar”. E isso não está certo – a polícia tem de servir e proteger o povo.

Desafios – E quanto ao sitema prisional?
West – Complementando isso, não podemos deixar de falar da reforma prisional. É preciso haver educação dentro das prisões, reabilitação, para que as pessoas possam mudar e sentir que podem voltar à sociedade quando saírem. Não temos isso nos Estados Unidos. Não conheço profundamente a situação aqui, mas posso imaginar. E nisso há uma intersecção com a questão da cor. Não se pode falar na questão racial, no Brasil ou nos Estados Unidos, sem falar de polícia e prisões. Em especial para os jovens negros. É claro que nós queremos polícia justa aqui e lá. E, por tempo demais, os negros têm sofrido com isso. Isso tem de parar.

Fonte:

Desafios do Desenvolvimento. Instituições – Depois da tempestade, a Nova Esquerda
2008 . Ano 5 . Edição 46 – 08/08/2008 p. 25-27

Disponível em: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1205:reportagens-materias&Itemid=39

Marcos Carvalho Lopes

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