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Como e Quando se Acabam as Revoluções?

Quando uma casa está arder os bombeiros não procuram, in primis, o incendiário mas apagar o fogo. Nós temos, antes de tudo, impedir que a nossa casa, a única que temos, não fique em chamas; está é a premissa, o pressuposto para tudo o resto. E nesta capacidade de manter Moçambique incólume, que consiste a heroicidade – sobretudo da juventude – hoje!

ensaio de Severino Ngoenha, Ergeminio Mucale, Filomeno Lopes e Augusto Hunguana

Kant é, sem dúvida alguma, uma das maiores figuras da filosofia moderna, cujas obras continuam a influenciar muitos dos temas discutidos na época contemporânea. De Kant se conhecem, sobretudo, a «Crítica da razão pura», a «Crítica da razão prática» e «Metafísica dos costumes» mas a obra que mais  influenciou os processos políticos e jurídicos da sua época foi, sem dúvida, a «Paz perpétua». 

O mote desta obra foi a revolução Francesa, que ele considerava uma reviravolta única e irreversível na história da humanidade, a favor da sua destinação. A revolução foi, para ele, uma Ruptura necessária mas pecou pela sua violência e por não ter sabido terminar. A questão era como manter as conquistas da revolução e acabar com a violência que a acompanhava e/ou proporcionava e temia a não terminar.

Deux étoiles.

A paz perpétua se apresentava como um projecto filosófico (1795) no qual esse ilustre doutrinador expôs vertentes jus filosóficas nos âmbitos do direito do Estado (instituição de uma constituição republicana), direito das gentes (liga livre de povos contrária a guerra) união e direito cosmopolita – reconhecimento dos seres humanos como cidadãos do mundo, o que lhes garante o direito a hospitalidade. Há em Kant uma visão não só política mas também económica, a ideia de que os governos populares e responsáveis, com o comércio, estariam mais inclinados a promover a paz, uma vez que  comercializando (trocando) poderiam, eventualmente encontrar – como diria Adam Smith – no interesse, a razão para apaziguar a violência de uns contra os outros.

Esta ideia se tornou uma corrente de pensamento e de uma certa prática política; essa ideia estava já presente no pensamento do filósofo Montesquieu – que defendera que o comércio afasta os preconceitos destruidores e gera cooperação -, esteve presente no internacionalismo liberal de Woodrow Wilson, no pensamento Joseph Schumpeter – que  argumenta que o capitalismo tornou os estados modernos inerentemente pacifícos.

As principais revoluções liberais foram violentas e intermináveis. A Revolução Francesa (dos Dantos e Robespierres) não conseguia terminar com as matanças e guilhotinas, a Revolução Americana escambou na guerra de secessão que ainda continua hoje, nos disfarces entre os azuis e os encarnados, em que se constituem os Republicanos e os Democratas. 

Essas revoluções soçobraram nas sua próprias contradições, a revolução francesa não conseguiu cumprir com as suas promessas de liberdade,  igualdade e fraternidade. As duas últimas foram sacrificadas no altar da liberdade dos mais fortes. Se a universalidade dos direitos tivesse sido cumprida, se teria respeitado a revolução haitiana e evitado o colonialismo e, hoje, depois das guerras coloniais , não se estaria no Sahel ainda a combater uma guerra pela independência…

A constituição americana, já no preâmbulo, afirma que todos os homens nascem livres e iguais mas acrescenta, existem homens e outras pessoas (negros e índios) que não estavam contemplamos na esfera dos direitos. Só em 1865, com a 15ª emenda da constituição, é que se mete termo a escravatura mas, ainda cem anos mais tarde, Martin Luther King Jr. teve que encabeçar a marcha sobre Washington para que – as parkers desde mundo – pudessem sentar num autocarro público e as crianças negras tivessem acesso (protegidos pela guarda nacional) a uma escola igual a dos seus coetâneos brancos.  Hélas, ainda hoje os KKK e os supremacistas fazem lei e não deixam respirar,  os Jorges Floydes deste mundo.

Caption reads, "[Civil Rights March on Washington, D.C. [Dr. Martin Luther King, Jr. and Mathew Ahmann in a crowd.], 8/28/1963" Original black and white negative by Rowland Scherman. Taken August 28th, 1963, Washington D.C, United States (The National Archives and Records Administration). Colorized by Jordan J. Lloyd. U.S. Information Agency. Press and Publications Service. ca. 1953-ca. 1978. https://catalog.archives.gov/id/542015

Foi porque estás revoluções não realizaram as suas promessas de liberdade para todos, de igualdade e fraternidade que abriram espaço para novas (contra) revoluções, também elas violentas: a Revolução Russa de 1917 e a Revolução Chinesa de 1948. Estas segundas revoluções talvez não tivessem acontecido se as primeiras tivessem cumprido com as suas promessas. Não cumprindo, abriram espaço a reivindicações em nome de igualdade não  realizada.

A Revolução Russa desembocou naquilo que foi a União Soviética, depois da Segunda Guerra Mundial, em que a Rússia se alargou através daquilo que Lenin chamara a violência revolucionária. Essa (contra) revolução não terminou com a Perestroika de Gorbachev,  as sua sequelas se fazem ainda sentir no conflito que opõe hoje a Rússia e a Ucrânia na guerra Proxy feita pelos americanos, em que os ideais revolucionários de duas nações não parecem ir no mesmo sentido. A grande Marcha de Mao continua, inexorável, em direção a uma Taiwan, num ritmo de um capitalismo de estado e de uma  política  que Agamben definiria estado de exceção. 

Contudo, como diria o apostata Museveni, foi na esteira das revoluções bolcheviques e maoísta que os povos oprimidos da África puderam apanhar boleia e reivindicaram as suas próprias liberdades e independências. 

As revoluções africanas se inscreviam no novo contexto político de pós guerra e eram legitimados pelas Nações Unidas e pela declaração universal dos direitos humanos de 1948, que compreendia o direito a autodeterminação dos povos. Todavia, as guerras de Indochina, da Algeria e as imposições da França – África mostravam que a autodeterminação e o conjunto dos valores das revoluções liberais não eram extensíveis aos povos, hegelianamente, fora da história. A guerra do Vietnam mostrava que, apesar de Bandung e a opção pelo não alinhamento, teríamos que saltitar entre   ideologias imperialistas de direita e de esquerda em confrontação.

Moçambique (como Guiné e Angola), devido ao anacronismo histórico de Salazar, chegou à Independência através de uma revolução (violenta) militarizada.

 A nossa revolução começa em 1962 mas produziu no seu interior uma contra revolução e, por isso não termina em 1975. É muito difícil conhecer a génese (verdadeira) e os fundamentos reais da contra revolução, que engoda o seu maior respaldo com os ataques de Chicualacuala, logo depois da independência. Começou quando Portugal integrou a OTAN em 1948, quando Portugal cedeu as bases dos Açores aos Estados Unidos durante a guerra de seis dias e exigiu que deixassem de apoiar os terroristas da Frelimo (MPLA e PAIGC) em 1967,   com a morte de Eduardo Mondlane em 1969, com os acordos de Alcora – entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal – em 1972 ou  com a proclamação da República Popular em 1975? O facto é que logo depois da Guerra da Independência começámos uma revolução contra revolucionária que, por sua vez, não terminou com os Acordos Gerais de Paz. A nossa Segunda República nasce como uma espécie de armistício entre guerrilheiros derrotados, o que mais e, imposto por um vencedor anónimo. 

A nossa dialéctica entre revolução e contra revolução perpetua-se com uma dialéctica de  reivindicações de legitimidades contrapostas (libertadores e democratizadora), que tentam esconder a realidade de um país vencido e obrigado, contra o seu povo, a uma política dolarctratica e de predação.

No nosso anacronismo histórico acreditamos – ou fingimos acreditar – viver ainda nas sequelas do binômio revolucionário/contra revolucionário feito por nós, acreditamos – ou fingimos acreditar – que as tréguas em que vivemos foram decretadas por nós. Impedidos pela nossa miopia histórica, não sentamos como partes (partidos) de um povo e sociedade – num reconhecimento recíproco – para estabelecermos um contrato social; um conjunto de instituições endogenamente pensadas e concebidas, nas quais nos reconhecemos e susceptíveis de nos orientar a um futuro comum. Esta miopia  tornou-nos (como geração) culpados, aos olhos dos mais jovens, das incongruências dos processos socioeconómicos em que participamos como instrumentos (neocoloniais) da vontade e decisão de outros; afinal aos vencidos não se pede opinião…

E eis-nos mergulhados numa convulsão bizarra e aporética, resultante das nossas contradições. O problema que nós temos hoje é o mesmo que Kant teve na sua época, como manter as conquistas do novo espírito em marcha e acabar com a violência que a acompanha e/ou a proporcionava e risca de se perpetuar?

As teses jus filosóficas de Kant nos âmbitos do direito do Estado continuam a ter uma certa validade, com ressalva de que o reconhecimento da igualdade entre os seres – e a carta africana acrescenta – entre os povos continua titubeante. O filósofo de Konigsberg pensava que o comércio entre países e nações iria pôr um fim definitivo a guerra entre nações, no nome de interesses, como confirmara Adam Smith. O que ele não podia imaginar é que a própria guerra tornar-se-ia num dos comércios mais rentáveis (com os impérios bélico-industriais), que as novas guerras entre países se chamariam guerras comerciais, e que os países fracos tornar-se-iam em espaços e teatros de confrontação entre países e blocos, ontem por razões ideológicas, hoje pela corrida aos recursos naturais – críticos para a transição energética.

Todavia, a resposta a aporia que nos habita encontra, em parte, resposta no próprio Kant. No opúsculo de 1784, ele explica o que o Aufklärung/ Iluminismo/esclarecimento/ilustração é a saída do homem da menoridade, e define a menoridade como a incapacidade do homem em fazer uso do seu entendimento de maneira autónoma, ou seja, sem uma doutrina ou tutela de uma razão de outrem/alheia. Os homens quando permanecem na menoridade, são incapazes de tomar as suas próprias decisões e fazer as suas próprias escolhas. Ortega e Gasset acrescentaria, nas nossas circunstâncias: país vencido, polarizado, com uma economia de trânsito e apetecível para seus vizinhos, país cheio de recursos – que não sabemos desfrutar- que atiram a cobiça de multinacionais e potências estrangeiros (…).

Como diria o filósofo guineense, Filomeno Lopes, com uma metáfora eloquente:

❝Nós somos como peixes que vivem no mar mas não sabem nadar

Não podemos esperar que pescadores que prepararam redes, anzóis, planos e estratégias para  pescar, estejam nos barcos de pesca para nos salvar. Sim, nós precisamos de sair da nossa involução, de fazer uma metanoia que nos transforme de solipsistas num cardume de peixes, de diferentes espécies, que nadam como se fossem um único indivíduo. Quando os peixes se movem juntos, melhoram a sua defesa contra possíveis predadores e aumentam as suas chances de obter alimento.

Com o seu tratado sobre a Paz Perpétua, Kant não conseguiu terminar com a violência da revolução francesa. Aquilo que terminou com a revolução foi a rebusca que a república nascente fez dos propósitos de Montesquieu – o barão  morto quase 34 anos da Revolução Francesa – que tinha começado a cogitar, na esteira de John Locke, quanto a necessidade não só de defender o liberalismo, mas de criar instituições que pudessem garantir uma separação de poderes como vigilância recíproca entre soberanias diferentes. Montesquieu, com o seu «O espírito das leis», influenciou todo o sistema liberal depois da Revolução Francesa, não só no velho, mas também no novo Continente. É no espírito do seu pensamento que as repúblicas nascentes da África, da América Latina e da Ásia continuam a pensar a maneira como devem viver juntas em termos de instituições. Porém, é preciso recordar que as instituições de Montesquieu foram insuficientes para criar uma paz social no Ocidente. Ela começa a engodar quando desaparecem os nacionalismos, ela começa a materializar-se quando nasce uma democracia social que não se limita à votação, mas adiciona a participação constante dos cidadãos na solução dos problemas que lhes dizem respeito, uma melhor distribuição daquilo que o país e a sociedade produzem.

Ora, para sairmos da situação em que estamos mergulhados temos que despir, definitivamente, as  legitimidades oriundas de passados históricos, repensar num projecto comum de sociedade, para além dos deferendos do passado, criar instituições neutras, para além dos partidos, à altura dos desafios no nosso tempo e circunstâncias.

Entre a Paz perpétua de Kant e a paz, democracia e respeito dos direitos na Alemanha e na Europa, transcorreram 250  longos e peníveis anos; feitos de turbulências, conflitos e guerras.  Não podemos olhar para resultados, ignorando os processos. Em Moçambique a restauração é urgente, não de egos, de polarização, de conflitos mas de mentalidade, de pensamento e de atitudes; o único meio -filosoficamente legítimo-, é a palavra, o diálogo, o compromisso e a busca de consensos. 

A única vitória possível é a paz – não perpétua – mas como entendimento das partes (partidos), para fazer o todo: a nação, Moçambique. 

Quando uma casa está arder os bombeiros não procuram, in primis, o incendiário mas apagar o fogo. Nós temos, antes de tudo, impedir que a nossa casa, a única que temos, não fique em chamas; está é a premissa, o pressuposto para tudo o resto. E nesta capacidade de manter Moçambique incólume, que consiste a heroicidade – sobretudo da juventude – hoje!

ensaio de Severino Ngoenha, Ergeminio Mucale, Filomeno Lopes e Augusto Hunguana

Marcos Carvalho Lopes

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