1

Como Wittgenstein leu a filosofia

Como a ave Fênix, a filosofia renasce das próprias cinzas e das eternas refutações

Acabei de ler um pequeno livro em que, mais uma vez, a filosofia é apresentada como um esforço coletivo em que cada filósofo, queira ou não, segue a tradição. Nele se insiste naquela imagem de que a filosofia é una. Nada mais afastado da realidade. A filosofia e a ciência são como uma viagem ao desconhecido, os filósofos, exploradores de mundos nunca imaginados, mundos novos, mundos diferentes, incomparáveis entre si. Na verdade, nem sequer podemos falar da filosofia mas dos problemas das filosofias. Se elas existem e há alguma continuação, só existem pela continuação de rupturas, de antagonismos, do abandono de velhos paradigmas, de vocabulários gastos e de problemáticas que a ninguém mais interessam. Wittgenstein é uma prova disso pois considera que o que entendemos por filosofia nada mais é do que uma grande confusão.

            Como poderíamos dizer, depois de ler o Tractatus Logico-Philosophicus, que existe a filosofia e que ela é una? Francamente, não sei como. Imagine o leitor que alguém afirma que tudo, ou quase tudo, que foi feito em química está baseado num erro grave e numa confusão fundamental — seja esta qual for. Como poderíamos afirmar que há continuidade na química depois de tal afirmação? Eu não vejo como. Se alguém diz que a química não consiste no que se fez até certa época, porque só o que se faria depois de esclarecidas as confusões contaria como trabalho verdadeiramente científico, o que provavelmente diríamos é que antes se fazia alquimia, não química. No Tractatus, Wittgenstein fala da tradição de filósofos, e da filosofia, como quem fala de alquimistas e de alquimia, opondo, tudo isso, ao que seria o verdadeiro enfoque filosófico: o dele e de seus imediatos precursores, seus próprios mestres e amigos. Parece um exagero dizer tudo isso, mas vejamos o que o filósofo austríaco disse sobre filosofia no célebre Tractatus. No Prefácio, afirma o seguinte: O livro lida com os problemas da filosofia, e mostra, eu acredito, que a razão pela qual esses problemas são postos é que a lógica da nossa linguagem é mal-compreendida.

            Noutras palavras, os problemas da filosofia resultam de os filósofos não terem compreendido a linguagem. Ou seja, por não terem compreendido os conceitos com os quais pensavam a realidade. Isso significa, num sentido importante, que Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, não sabiam bem de que estavam falando, por desconhecer a linguagem que usavam para pensar o que pensaram e dizer o que disseram!

               Não se surpreenda, leitor, ao ler a proposição 3.324, segundo a qual: Desse modo, as confusões mais fundamentais são facilmente produzidas (a filosofia como um todo está cheia delas).

              Os filósofos, então, só produziram confusões. Pelo que Wittgenstein afirma devemos inferir que eles nem sequer estiveram equivocados. Isso já teria sido um avanço. Pois quem erra pode estar em condições de se corrigir e de descobrir a verdade. Não. A grande maioria das teses dos filósofos nem sequer chegam a fazer sentido:

Na sua maioria, as proposições e questões a serem encontradas nas obras filosóficas não são falsas, mas carentes de sentido. Consequentemente, não podemos dar nenhuma resposta a questões desse tipo, mas unicamente apontar que elas não têm sentido. A maioria das proposições e questões dos filósofos se origina do nosso não entender a lógica da nossa linguagem. (Proposição 4.003)

               Essa incompreensão, note-se, não devemos atribuir unicamente aos filósofos anteriores, mas a todos nós. Com isso Wittgenstein quer dizer que só na sua época, e graças às contribuições de Frege, Russell e ele próprio, podemos, finalmente, entender a lógica da nossa linguagem. Por isso, afirma o filósofo vienense no final da proposição que acabo de citar: não é surpreendente que, de fato, os mais profundos problemas não sejam, de modo algum, problemas.

               Os filósofos se preocuparam, então, por quê? A que dedicaram suas vidas? Que nos legaram? Só confusões? Talvez, se Wittgenstein estiver certo. Se não estiver, houve filosofia antes dele. Se, pelo contrário, tem razão, ele próprio seria o exemplo do nascimento de uma nova filosofia, ou, quiçá, do renascer de uma antiga… Seja como for, e apesar dos que negam seu passado, filósofos e não-filósofos, a filosofia se fez e refez ao longo de sua rica e conturbada história, e, mesmo destruída, se reerguerá, despregará suas asas e voará.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Se para Wittgenstein, anteriormente à sua época não se fez Filosofia, como saber se depois dele se fez Filosofia?
    A Ciência, como Kuhn defende, ela é constituída ou feita por paradigmas; esse paradigmas é que contribuem para o desenvolvimento dela. E, a Filosofia, apesar de não ser ciência, não está isenta disso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *