Este texto acaba de ser publicado na Capoeira – Humanidades e Letras (www.capoeirahumanidadeseletras.com.br) numa edição especial de “cronicas do impeachment”. Eu e Tulio Muniz editamos esta edição especial que tenta pensar o tempo presente (com todos os riscos que isso implica).
Marcos Carvalho Lopes
Se o entusiasmo compartilhado é um símbolo de progresso, vivemos tempos em que o futuro se encolhe e o que surge como novidade é o retorno de nuvens de sombra, não na forma tradicional de coletivo de gafanhotos vorazes, mas mantendo a certeza de garantia da ordem, a boa aventurança da sociedade. Não de toda sociedade, mas da sociedade que arregaça as mangas e faz do Brasil, Brasil; que veste a camiseta amarela da seleção, apita e bate-panelas; a sociedade que se mobiliza contra a corrupção, a degeneração, a perda da pureza; não são todos, são os melhores homens, os excelentes que fazem o Brasil, Brasil. Este entusiasmo parcial, olímpico, não deixa de ser um entusiasmo triste, cheio de deuses que querem manter seus privilégios, uma maldição.
Do mesmo lado do espelho, alguns intelectuais tristes ou cansados, tristes e cansados; mas orgulhosos e espertos, os mais espertos e lucrativos, sabem que a identidade é uma dor e fomentam a escola do ressentimento, ressentimento sem alteridade, tipo narcisismo de ódio na timeline, do Eu que quer salvar o mundo sem sair de si. Corações partidos que não se comprometem, mantêm a distância, e denunciam o partidarismo, denunciam o engajamento, denunciam a cegueira ideológica do mesmo modo que o psicopata recorre a justificativas psicanalíticas e o bom bandido fala de sua vida de exclusão, demonstrando que a sociedade lhes deve, sendo os crimes de que lhe acusam mera cobrança coercitiva. Pensadores que se movem de acordo com as aferições do IBOPE e ao vivo, sabem que a maioria tem a verdade e que de nada vale a indisciplina, já que cada qual entrega seus dados ao Big Brother rezando nos terços dos smartphones, na angústia autoflagelante de um Prometeu sem fogo da sabedoria, empresários de si mesmos.
E eu que sou mais um destes, que não se identificam, diante da necessidade de traduzir este tempo em pensamento, enfrento a dificuldade de uma formação sem objeto, sem uma perspectiva que recorte a realidade numa metafísica singela em que minha orientadora/meu orientador se reconheçam, em que todos os meus orientandos e orientandas se reconheçam, proponho aqui uma conceitografia de duplipensar, que funcione como um chiste sem gargalhadas, um curto circuito talvez, ferramentas para consertar ou fazer ranger, engrenagens que não fazem parte do mecanismo. Se dizem que fazer filosofia é inventar conceitos… tomem aqui uma penca:
Banalidade do malfeito: rejeitar a imagem de engrenagens impessoais e chamar a responsabilidade dos seres humanos é perceber a banalidade do mal. Contudo, nestas paragens esta atribuição ganha uma configuração diversa (e complementar), quando resistimos a impessoalidade mecânica e afirmamos nossa diferença impondo nosso lugar de poder como instância na qual a identificação – simpática ou não – pode decidir sobre quais devem ser os procedimentos. Neste sentido, não se cristalizam rotinas impessoais, mas oportunidades burocráticas de instanciar decisões usando a máscara neutra do “sistema”. Também não se assume a responsabilidade e a imagem da engrenagem é reivindicada para explicar o não-funcionamento e o malfeito, mantendo uma atitude ambígua quanto a própria condição de peça supérflua: dramatizada tragicamente como imposição do impessoal ou negada de modo voluntarista, como alguém que sozinho seria capaz de “dar um jeitinho” nesta máquina extraviada. Neste quadro, desvios quanto aos procedimentos formais em casos em que a atuação é tida como reparadora, ou seja, justa em relação a perspectiva de lealdades pessoais, são considerados atos justificados.
Puxadinhos morais: sem a construção de agenciamento moral, o discurso sobre valores não é uma “engrenagem fora do mecanismo”, mas funciona sem que as contradições sejam consideradas como condenáveis ou momentos de dilemas que exigem posicionamento. Assim, acusados de corrupção podem julgar e também acusar de corrupção; a polícia pode cometer crimes para combater a criminalidade; o juiz pode desconsiderar a lei, ou melhor, interpretá-la em sentido particular, para fazer justiça etc. se os valores morais constituem a segurança quanto a crenças e expectativas comuns de comportamento que asseguram a convivência, o lugar de refúgio e abrigo da solidariedade, vivemos em puxadinhos morais que justificam a indignação seletiva.
Política sem projeto/projeto sem política: são complementares a política sem projeto e os projetos sem política. No primeiro caso os atores políticos procuram agir de modo a se manter na cena, garantindo e perpetuando as vantagens da posição de poder; no segundo caso, os projetos surgem como proposições que emanam da vontade daqueles que detêm o poder executivo, sem a legitimidade de um debate público que lhe avalizem ou problematizem como algo comum. A encenação de diálogo, quando acontece, se dá de forma centralizada ou se efetiva como oportunidade para negociações que reafirmam a política sem projeto.
Véu da indiferença: se a justificação para a justiça distributiva se vale de um tipo de experimento mental que cobre com o véu da ignorância nossa própria posição dentro do sistema… a manutenção das desigualdades extremas se vale da indiferença cotidiana quanto aos prejuízos provocados pela injustiça naturalizada. O véu da indiferença não é um experimento mental, mas elemento do niilismo cotidiano.
Simpatia hobbesiana: para se desviar da descrição mecanicista e individualista da sociedade como sendo o resultado do choque de indivíduos que se movem somente de acordo com seus interesses egoístas, desenvolveu-se na antropologia filosófica a importância da simpatia, da capacidade de identificação com o sentimento dos outros ou de se colocar no lugar do outro. Aqui o Leviatã pede para que as pessoas acreditem na narrativa de que indivíduos-mônadas, sem identificação moral ou práticas de solidariedade, poderiam ser o padrão de conduta para o desenvolvimento e modernização do país.
Liberalismo subsidiado ou clientelismo de elite: clientelismo de elite e liberalismo subsidiado são sinônimos da defesa do mercado e concorrência livres, falando de diminuição de impostos, mas não abrindo mão de subsídios e subvenções por parte do Estado, tanto para manutenção de empresas privadas, quanto para a compra de bens pessoais. Por exemplo, o governo temerário tratou de ampliar o programa Minha Casa, Minha Vida propondo o financiamento de imóveis de até 3 milhões de reais. Obviamente esta ampliação não atende aqueles que não possuem condições de ter um teto sem este tipo de financiamento com juros subsidiados…
Teologia egotista: religiosidade sem transcendência, que não promove vínculos com valores normativos de respeito e/ou solidariedade para com os diferentes/pecadores; ganha força ao oferecer o monopólio da pureza e a posse da Verdade.
Classe alfa: nova classe social ainda não catalogada – que para outros é apenas um mito urbano – que surge sintomaticamente como centro das explicações de analistas políticos facebookianos, sócio-neo-fundacionistas, marxistas lacan-zizekianos etc.
Nominalismo autofágico: pratica de trocar os nomes para manter os hábitos e crenças inalterados. O nominalismo autofágico é praticado tanto em nível institucional quanto nas relações interpessoais. Esta mesma “conceitografia” é escrita com esta prática metodológica de gerar nomes.
Presunção de boa-fé do acusador: (conceito roubado, ou melhor, expropriado pelas costas de Luiz Fernando Veríssimo) a Operação Lava-Jato inaugurou a ideia de que provas obtidas de formas ilegais são válidas, desde que em ação de boa-fé. Deste modo a promotoria tem carta branca para, seguindo seu coração puro, obter provas e divulgá-las junto aos órgãos de imprensa que compartilham tal boa-fé.
Salto triplo carpado hermenêutico: o ministro do Supremo Ayres Brito, em 2010, ao se referir a uma manobra que buscava tomar como inconstitucional a Lei de Ficha Limpa inventou este termo para designar o que parecia ser uma técnica jurídica de interpretação que torcia o texto de um modo tão surpreendente quanto os saltos no exercício de solo da ginasta brasileira Daiane dos Santos. De lá para cá este tipo de manobra interpretativa tornou-se cada vez mais comum e complexa, em um processo de judicialização da política no qual o poder judiciário tomou o centro do palco institucional. Se juízes de primeira instância se consideram por vezes deuses, os ministros dos órgãos superiores mostraram-se capazes de ocupar um lugar de poder cabalístico. Se todos são iguais perante a lei, a lei não é igual perante os homens.
Marcos Carvalho Lopes
Pós-doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-RJ; doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é professor na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Autor de Canção, estética e política: ensaios legionários (mercado de letras, 2012) e Máquina do Medo (PUCGO, 2013); organizou em parceria com Ronie Silveira a coletânea Religiosidade brasileira e filosofia (Editora Fi, 2016). .