Ensaio de Severino Ngoenha, Thomas Kesselring, Carlos Carvalho
Ou eles (os chefes) sabiam ou não sabiam.
Se sabiam, são culpados de corrupção.
Se não sabiam, de incompetência.
Em ambos os casos são culpados de sacanar os moçambicanos
As televisões, como todos os mídia, têm a função de informar, mas também participam na educação dos cidadãos. O que os mídia nos ensinam em relação ao julgamento das dívidas ocultas? O que aparece em primeiro lugar, de maneira clara e recorrente, é a dimensão iconográfica da justica, já que a arquitetónica está completamente ausente na tenda da BO.
Nas representações que os nossos canais de televisão escolheram, a justiça aparece ligada a uma balança e a um martelo. Apesar da sua aparente obviedade – uma vez que muitas tribunais têm a balança como símbolo – na verdade a balança (ao lado da Minerva, Themes, Marianas, às quais podemos juntar o símbolo da costureira) é uma das muitas representações da justiça e, por detrás dela, se esconde uma específica concepção de justiça. A balança e o martelo que são exibidas em todas as emissões dão a ideia de uma justica que ausculta, pesa, delibera e depois de separado o trigo do joio, sentencia (Paul Ricoeur). Trata-se de uma concepção punitiva da justiça.
As primeiras considerações e explicações do juiz foram em volta do instrumento jurídico, o código a ser usado e a nortear todo o julgamento; non veritas sed auctoritas facit legem -não é a verdade mas a autoridade que faz a lei- (Hobbes). A ideia de Código remete-nos, imediatamente, à sua génese, ao direito Romano. Só que, antes de ser a dura lex sed lex, o direito Romano, no espírito (Montesquieu), nasceu para unir pessoas separadas sob a égide de uma única e mesma lei. A justiça é um acto do logos, do verbo grego legen, ‘juntar’.
O objectivo do direito, e a sua permanente vocação filosófica, é permitir que, através da lei, pessoas diferentes possam viver juntas e em harmonia. Diferentemente dos gregos, cuja pertença dependia de um gene comum, Roma foi desenvolvida por pessoas diferentes por proveniência, raças, crenças e culturas. Em Roma – como no Moçambique de hoje – é a lei que fazia o ecúmeno interno, a nação; ela existe, in primis, para tecer laços de respeito e até de fraternidade ou solidariedade (segundo as crenças ou ideologias de cada um). Os moçambicanos são uma comunidade, se reconhecerem uma filiação e uma fraternidade cultural que faz deles concidadãos através da obediência a uma única e mesma lei.
Esta foi a grandeza de Mondlane, prolongada por Machel – apesar de algumas trafulhices – trazer os moçambicanos dispersos no espaço e diferentes por ethos, a uma unidade axiológica, da qual a lei é expressão.
Por quanto a lei mude (códigos de 1929 e de 2019 ), para se adaptar às metamorfoses dos tempos e das suas movediças circunstâncias, ela não pode abdicar da sua arke, do seu espírito genético e arqueológico (Foucault). Por isso, a vocação da Lei e do Direito não é punir, e ninguém devia ficar contente porque outra pessoa vai para a ou está na prisão, como se tornou comum, nos últimos dias nas redes sociais. As BOs não estão na natureza do direito. A prisão não é vingança, justifica-se só como defesa do bem estar e tranquilidade sociais, contra um (ou mais) indivíduo(s) que aparece(m) como uma ameaça para tranquilidade pública. Aliás, a degradação humana das prisões – invenção do ocidente – não tem correspondência nos nomois (culturas) africanos, que conceberam outros mecanismos de reintegração do prevaricador. É o sentido profundo do que se chama Ubuntu, fazer com que o filho pródigo volte à convivência civil e não fechá-lo em masmorras com verdadeiros delinquentes, o que em vez de o melhorar o degrada e torna pior, o que leva a um círculo vicioso. A filosofia contemporânea do direito (Barbara Cassin) é contrária às prisões como princípio e forma única e privilegiada de reintegração, e a nossa própria lei prevê penas alternativas que só não são aplicadas, pela inércia e comodismo das nossas instituições.
O direito opera para um desígnio superior, a unidade política (Pierre Manent). Ubi societas ibi ius -onde há sociedade há necessidade da lei- (Cicero). Para além da lei – que tem que ser igual para todos – a vida em comum exige uma certa organização, da qual emerge, inevitavelmente, uma hierarquia e uma dinâmica de poder (Thomas Hobbes, Max Weber, Bertrand Russell). As palavras “governar” e “governador” vêm do latim “gubernador” e do grego “kybernetes” respectivamente, e significam timoneiro (capitão) de um navio.
Invocar transportes marítimos é fundamental, não pela EMATUM (Empesa Moçambicana de Atum) – sem peixes e com barcos dispendiosos a enferrujarem no porto -, ao mesmo tempo que as populações estão sem transporte e as fronteiras marítimas desguarnecidas estão à mercê de todas as chinesarias de tráficos.
A analogia do barco é importante porque, como a política, o perigoso trabalho de navegação marítima, exige uma cooperação rigorosa e um comando à altura de todo e qualquer tipo de possíveis intempéries. O capitão (como o dirigente político) tem que ter uma visão geral do navio, da sua velocidade, da direcção, das imediações, das condições meteorológicas, etc. Em navios antigos, os remadores sentavam-se num espaço fechado e não conseguiam descortinar a direção da nave; assim como os operadores dos barcos a vapor agiam cegamente, de acordo com as instruções do capitão. Porém, apesar do seu poder e autoridade, assim que um navio entra num porto (até no nosso Maputo), o capitão entrega o comando do navio a um piloto local.
Por analogia, este processo pode servir de exemplo para ilustrar o grande avanço da divisão de poderes para o crescimento da transparência e da democracia. Enquanto a divisão de funções na navegação correspondia a uma divisão de trabalho com fins de eficiência, no direito a divisão de poderes concorre para melhorar a união política, levando poderes autónomos a inter-agirem uns com os outros de modo a evitar a prevaricação e os abusos inerentes à frágil natureza humana e à natureza do poder (Montesquieu).
Hoje, no mundo globalizado, na ferrenha e complexa concorrência mundial, precisamos poder confiar na sabedoria (política e técnica) e na honestidade (moral) dos nossos pilotos, para a defesa dos nossos interesses como nação, para a manutenção e progresso das nossas liberdades democráticas e para a defesa da nossa soberania e independência.
O processo das dívidas ocultas em curso revela o momento dramático que atravessamos como país e povo: os principais réus (presidente, ministro da defesa, do interior, das finanças, Director dos serviços de segurança, presidente do Banco de Moçambique), são aqueles a quem depositamos a confiança das nossas vidas, dando-lhes a responsabilidade (acompanhada de privilégios) de pilotar o navio, guiar a nossa sobrevivência – num mundo voraz – como pessoas, país e povo.
Com um simples silogismo disjuntivo, a classe política, seja qual for a sentença no teatro bufo da BO, sai moralmente redimensionada. Ou o presidente e demais responsáveis (ministro da defesa, do interior, da segurança) sabia(m) ou não sabia(m). Se sabia(m), é/são responsáveis de corrupção. Se não sabia(m) são culpados de incompetência (até pela magnitude da fraude). Em ambos os casos, não são os timoneiros de que o nosso navio, de trinta milhões de almas, precisa.
Mas donde saíram estes pilotos incapazes ou corruptos? Donde saíram os monstros que fazem machambas com 500 mil dólares, consultorias de cinco milhões de dólares e até príncipes pretensiosos e arrogantes, que se permitem o luxo -no desprezo pelos pobres- de esquecer o nome do banco onde depositaram milhões de dólares? Do ponto de vista pan-óptico (G. Bentham), esses monstros são o espelho do que nós nos tornámos e hoje somos. Alguns os detestam porque queriam ter sido eles a estar nos abu dabis e com bustanis no lugar dos felizardos Mutota, Nhangumelo, Ndambe e outros moçacanistas. Os mais virtuosos – para além das lamentações bíblicas em fóruns privados – gritam pela própria passividade e ausência cobarde no espaço e debate público, o que resulta em conivência e cumplicidade.
A responsabilidade das dívidas ocultas recai sobre o povo – que escolhe os seus dirigentes – e na sociedade (elites) – que estabelece as regras das eleições e os mecanismos de controlo das acções dos eleitos. Se as eleições dos dirigentes não obedeceram a critérios de competência e honestidade mas foram regionalistas e partidários, o povo – tribalista e parditocrático – que o(s) elegeu é responsável pelo seu desaire. Se os dirigentes foram escolhidos pelas suas qualidades intrínsecas mas – como Robert Mugabe (Zimbabué), Isaias Afewerki (Eritreia), Daniel Ortega (Nicarágua), Nayib Bukele (El Salvador) e Abiy Ahmed (Etiópia) – deixaram-se corromper pelo poder, então as elites (juristas, politólogos, sociólogos, filósofos, partidos políticos -leitores do Gulag de Soljantsyne e do Senhor dos Aneis de Tolkien) são responsáveis por não terem previsto e antecipado mecanismos de controlo, correcção, responsabilização, destituição, por não terem mecanismos de vigilância sérios, firmes e independentes para controlar o desempenho dos eleitos.
A corrupção é como um cancro, quando é pequena se pode combater com relativa facilidade. Quando atinge os órgãos vitais (ministérios, administração…) é mais difícil. Porem, a cleptocracia, como o cancro no cérebro, é fatal.
Somos culpados, como povo e sociedade, por deixarmos que os nossos supostos servidores (ministerium) se tornem nossos patrões e senhores.
Nunca este dito popular foi mais adequado : “cada povo tem os governantes que merece!”
Ensaio de Severino Ngoenha, Thomas Kesselring, Carlos Carvalho