por Mireille Delmas-Marty
Como podemos proteger e promover a diversidade das expressões culturais, enquanto resistimos ao relativismo e ao imperialismo, e reconciliamos o universalismo dos direitos humanos com o pluralismo das culturas? Mireille Delmas-Marty, membro do Institut de France e jurista especializada no estudo da internacionalização do direito, compartilha sua perspectiva sobre a questão. Ela defende a “crioulização recíproca”, um processo dinâmico e em evolução para a coordenação, a harmonização e, por vezes, a unificação das diferenças.
Proteger e promover a diversidade das expressões culturais é uma das prioridades que os Estados-membros da UNESCO estabeleceram para si mesmos no início do terceiro milênio. Ao assinar a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005 (2005 Convention), eles definiram a diversidade cultural como um patrimônio comum da humanidade que deve ser não apenas protegido – como um tesouro consagrado e permanente –, mas também promovido, porque é um tesouro vivo e, portanto, renovável e em evolução.
A diversidade cultural já havia sido elevada ao patamar de patrimônio comum da humanidade na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001 (Universal Declaration of 2001), aprovada por unanimidade pela Conferência Geral da UNESCO em novembro daquele ano. O texto afirma que a diversidade cultural é, para a humanidade, “tão necessária quanto a biodiversidade é para a natureza”. Foi a primeira importante reunião intergovernamental realizada logo após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, e a UNESCO queria proclamar, em alto e bom som, sua rejeição à teoria do choque de civilizações e sua recusa em santificar as diferenças.
Evocar esse contexto me parece absolutamente necessário porque, desde 2001, nós estamos envolvidos em uma espécie de guerra civil mundial permanente, que mantém o furor religioso genuíno e aterroriza populações inteiras. Isso resultou, em especial, no êxodo em massa de populações que vivenciamos atualmente, assim como em tensões identitárias dos países da imigração – que estão se fechando em suas diferenças, em nome de uma identidade nacional supostamente ameaçada. Todos esses eventos atuais nos obrigam a desenvolver ferramentas cada vez mais eficazes para o pluralismo cultural.
O pluralismo e o universalismo são incompatíveis?
Deve ser reconhecido, no entanto, que o texto da Convenção de 2005 contém uma contradição subjacente, que não é de fácil resolução, entre o pluralismo – que a Declaração de 2001 descreve como atribuir “expressão política à realidade da diversidade cultural” – e o universalismo, que está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (Universal Declaration of Human Rights(link is external)) e, de forma mais ampla, na legislação sobre direitos humanos.
O risco de contradição tem duas faces, pois, com o estabelecimento do princípio da “igual dignidade de todas as culturas” (Artigo 2 da Convenção de 2005), o pluralismo cultural, se limitado à justaposição de diferenças lado a lado, poderia levar a um certo relativismo de valores e, consequentemente, a uma espécie de negação do universalismo.
Por outro lado, o universalismo dos direitos humanos poderia levar à negação do pluralismo, caso forçasse a fusão de todas as culturas e o desaparecimento de todas as diferenças. Nesse caso, tal universalismo seria a nova roupagem de um imperialismo que não fala seu nome.
Os redatores da Convenção de 2005 viram essa dificuldade de forma clara. Eles estabeleceram a regra fundamental no Artigo 2: “Ninguém poderá invocar as disposições da presente Convenção para atentar contra os direitos do homem e as liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantidos pelo direito internacional, ou para limitar o âmbito de sua aplicação”.
Em outras palavras, as diferenças são permitidas apenas se forem compatíveis com os direitos humanos. A dificuldade é que a garantia não é a mesma para todos os direitos. Para os “direitos não derrogáveis”, como é o caso da igual dignidade humana (proibição de tortura e outros tratamentos desumanos ou degradantes), a proteção é absoluta e se aplica mesmo em situações de guerra ou terrorismo, definindo, em princípio, um limite comum à diversidade de culturas. Outros direitos (privacidade, liberdade de religião) estão sujeitos a restrições, quando o propósito é legítimo e as restrições são proporcionais.
É justo dizer que os redatores da Convenção de 2005 estabeleceram um objetivo, mas não forneceram um “manual do usuário” para evitar que pluralismo rimasse com relativismo, e universalismo com imperialismo.
Como jurista, a minha contribuição para a reflexão sobre os mecanismos de pluralismo cultural seria propor, se não um conjunto de instruções, pelo menos algumas maneiras para tentar conciliar o pluralismo e o universalismo, bem como alguns meios para tentar aproximar as culturas.
Sabemos que muitos conflitos são o resultado da ignorância em relação ao Outro, mas, muitas vezes, nós nos esquecemos de procurar suas origens na ignorância de nossa própria cultura, o que é um fator determinante. Dispor de formas para ampliar o nosso conhecimento sobre diferentes culturas, incluindo a nossa, é essencial, acredito eu, porque permite que todos evitem conceber o universal como uma extensão de sua própria cultura. Em outras palavras, é necessário pluralizar o universal.
Porém, para onde devem conduzir esses caminhos, que se abrem para a ampliação do nosso conhecimento sobre diferentes culturas? Minha resposta é: à aproximação das culturas. Esse é um passo adiante, não apenas para misturar as culturas, mas torná-las mais compatíveis umas com as outras. Eu chamaria isso de ordenar o pluralismo.
Pluralizando o universal
As percepções sensoriais – audição, visão, olfato, paladar e tato – constituem a primeira ferramenta para um verdadeiro conhecimento sobre diferentes culturas. Sabemos até que ponto concertos ou festivais, por exemplo, contribuem para expandir o nosso conhecimento por meio das percepções sensoriais.
A segunda ferramenta abrange as representações cognitivas – a aquisição de conhecimento por meio da razão, e não necessariamente por meio dos sentidos. Fazem parte dessa categoria os discursos educacional, filosófico, econômico, sociológico, ético e jurídico. Por exemplo, o papel das bibliotecas, das instituições culturais ou das Universidades Populares do Movimento Internacional ATD Quarto Mundo (ATD Fourth World(link is external)).
Estas são fundamentadas na convergência do conhecimento, uma noção sobre a qual eu gostaria de me aprofundar brevemente. Desde 1972, as Universidades Populares do Quarto Mundo têm investido no compartilhamento do conhecimento entre os eruditos e aqueles que sabem – isto é, entre o conhecimento de acadêmicos e o conhecimento da experiência. A cooperação entre instituições culturais também tem como base a ideia de combinar vários caminhos cognitivos. No campo da arte, nós temos um grande número de exemplos desse tipo de convergência. Por exemplo, o compositor francês Pierre Boulez(link is external), que, no final da década de 1980, esclareceu o processo de composição musical ao evocar as lições do artista suíço Paul Klee(link is external), da Escola de Design Bauhaus(link is external), em Weimar, Alemanha (de 1921 a 1931).
A combinação do sensorial com o racional – e sabemos que essas duas capacidades são conectadas – é, sem dúvidas, a que abre as mais amplas perspectivas para o nosso conhecimento sobre diferentes culturas. Atualmente, essa combinação é facilitada por novas tecnologias, como foi ilustrado de forma admirável pelo Museu da Cultura Mundial (Museum of World Culture(link is external)), em Gotemburgo, Suécia, inaugurado em 2004, ou pelo Mucem(link is external) (Musée des Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée), em Marseille, França, criado em 2013.
Seja qual for o caminho que tomemos – sensorial, cognitivo ou combinado –, nós temos várias maneiras de ordenar o pluralismo, sem o suprimir.
Indo além das metáforas fixas
Para evitar o relativismo e o imperialismo dos valores, é necessária uma dinâmica interativa e adaptável. A aproximação das culturas deve ser compreendida como um processo, um movimento que nos estimula a ir além das metáforas fixas – os direitos humanos vistos como as fundações, os pedestais, os pilares ou as raízes de diversas culturas – e dar preferência à metáfora que apresenta os direitos humanos como a linguagem comum da humanidade. Ela sugere três processos, cujo efeito dinâmico está crescendo: o intercâmbio intercultural (diálogo), a busca por equivalências (tradução), e a transformação recíproca (crioulização).
O diálogo, ou intercâmbio intercultural, melhora a compreensão e o conhecimento do Outro e, assim, facilita a aproximação, embora não a garanta. Como um exemplo, eu resumo aqui o debate de juízes sobre a pena de morte, motivado por uma interpretação ousada do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em 1989. O tribunal decidiu que a extradição para os Estados Unidos de um homem sentenciado à morte violava a proibição de tratamento ou punição desumana ou degradante. Por suas aplicações em potencial a vários países terceiros, essa jurisprudência teria uma influência em todo o mundo. Em 2001, ela parece ter favorecido uma reviravolta pela Suprema Corte do Canadá, que se baseia amplamente nas decisões do TEDH. Também foi utilizada em 1995 pela Suprema Corte de Apelação da África do Sul, para respaldar a decisão sobre a pena de morte como contrária à proibição de tratamento cruel, desumano ou degradante.
Contudo, o diálogo continua sujeito à boa vontade dos atores e, nesse sentido, sua contribuição para a aproximação das culturas é limitada a coordenar as diferenças.
A segunda maneira, que vai além no reconhecimento de valores comuns, é a tradução. Um verdadeiro “milagre”, segundo o filósofo francês Paul Ricœur (1913-2005), ela “cria uma semelhança onde parecia haver apenas a pluralidade”. Eu acrescentaria que a tradução é “miraculosa” na medida em que respeita as diferenças, ao mesmo tempo em que busca equivalências que possam tornar essas diferenças compatíveis. A tradução é um meio de harmonização das diferenças, uma abordagem que contribui para a aproximação com base no princípio da harmonia musical, como definido por Platão em O Banquete (também conhecido como Simpósio): “De elementos contrários, como sustenidos e bemóis, a arte da música, ao fazê-los concordar um com o outro, produz harmonia”.
Dito isso, muitas vezes encontramos conceitos intraduzíveis e os equívocos que eles causam. Por exemplo, no Artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, lemos que “todos os seres humanos […] são dotados de razão e consciência”. Inicialmente, apenas a “razão” é mencionada. Contudo, um dos redatores da Declaração(link is external) (link em inglês), Zhang Pengchun, da China, observou que, se o propósito da Declaração era ser universal, a noção de razão por si só não seria suficiente. Ele propôs adicionar o termo chinês liangxin, que se traduziu como consciência. Na realidade, a equivalência entre liangxin e consciência é fraca, porque o termo chinês, que provém dos caracteres lian e gxin, evoca consciência moral no sentido confuciano, ou seja, uma consciência que favorece a alteridade.
Para resolver esse tipo de dificuldade, nós precisaríamos ir ainda mais longe, implementando o terceiro meio mencionado acima: a hibridação ou, para evitar possíveis equívocos, a crioulização. Eu uso a palavra crioulização da forma como foi utilizada pelo poeta francês Édouard Glissant (1928-2011), quando sugeriu abrir a nossa poética particular uma com a outra. Em outras palavras, a crioulização torna possível unificar as diferenças, ao integrá-las em uma definição comum.
Em seu livro, La Cohée du Lamentin (2004), Édouard Glissant escreveu: “A crioulização não é um simples mecanismo de intercruzamento. É uma mistura que produz algo inesperado”. Produzir o inesperado é encontrar – além do diálogo e da tradução, mas graças a estes – um significado novo e verdadeiramente comum. É uma forma de superar as diferenças.
Uma mudança do domínio poético para o jurídico me permitirá analisar o exemplo de um conceito com vocação universal, cujo alcance jurídico está em evolução: o crime contra a humanidade.
Rumo a uma transformação mútua
A noção de crime contra a humanidade apresenta uma dimensão coletiva – “um ataque generalizado ou sistemático sobre uma população civil” – e implica a despersonalização da vítima. Utilizado pela primeira vez na carta do Tribunal Militar Internacional em Nuremberg, em 1945, esse conceito é implicitamente parte da percepção ocidental de humanidade, que se fundamenta na ideia de que cada ser humano é um indivíduo e, igualmente, um membro da comunidade humana.
Contudo, o conceito foi gradualmente ampliado para a destruição de bens culturais. No ano de 2001, os juízes do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (TPII) decidiram que, quando a destruição e a degradação de construções dedicadas à religião ou educação forem praticadas com propósito discriminatório, isso equivale a “um ataque à própria identidade religiosa de um povo. Como tal, quase exemplifica a noção de crime contra a humanidade porque, na verdade, a humanidade como um todo é afetada pela destruição de uma cultura religiosa específica e de objetos culturais relacionados a ela” (ICTY, Prosecutor v. Dario Kordic and Mario Cerkez, IT-95-14/2, Judgement, February 26, 2001).
A questão também surge em relação ao Iraque. “A destruição de objetos que traçam a história de um povo é uma forma eloquente de desarraigá-lo, privando-o de suas origens e destruindo-o em sua alma”, diz o jurista franco-italiano Pejman Pourzand (Radio Notre Dame, 6 de março de 2015). Outros comentaristas se referiram a esse tipo de destruição como um “crime contra a história da humanidade”.
Para garantir a crioulização genuína por meio de uma transformação recíproca, seria necessário integrar culturas que valorizam os vínculos entre indivíduos da mesma comunidade nacional – como sugerem a palavra ubuntu (que, traduzida livremente, significa “humanidade comum”) da língua zulu da África do Sul, o termo japonês uchi-soto (a “distinção entre os membros de um grupo e os outros”), ou o já mencionado termo confuciano liangxin (“consciência”).
Também seria necessário associar as culturas que impõem deveres aos seres humanos para com a natureza, como aquelas que protegem a Pachamama (Mãe Terra), por exemplo, como dizem as constituições do Equador e da Bolívia. Talvez essa seja a forma como deveríamos entender a proposta atualmente em circulação, para ampliar as noções de crime contra a humanidade e genocídio para o ecocídio – ou seja, o dano irreversível e grave causado ao equilíbrio do ecossistema.
A fim de atribuir à noção de crimes contra a humanidade uma vocação verdadeiramente universal, outras tradições devem enriquecer a visão ocidental da própria humanidade.
A aproximação das culturas, o tema da Década Internacional em curso (2013-2022), envolve muitos caminhos que tornam possível resistir tanto ao relativismo quanto ao imperialismo, assim como conciliar o universalismo dos direitos humanos com o pluralismo das culturas. Estes são os caminhos que levam à humanização recíproca.
Com este artigo, O Correio da UNESCO marca a celebração do Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, 21 de maio. Publicado originalmente em: https://pt.unesco.org/courier/2018-2/crioulizando-nocao-humanidade
Mireille Delmas-Marty é francesa, membro do Institut de France e professora honorária do Collège de France. É também uma das fundadoras da Association de Recherches Pénales Européennes (ARPE), presidente honorária do Pharos Observatory of Cultural and Religious Pluralism, membro do Haut Conseil de la Science et de la Technologie, e administradora da Biblioteca Nacional da França.
Delmas-Marty publicou vários livros sobre direito penal, direitos humanos e a globalização do direito, incluindo: Les forces imaginantes du droit, em quatro volumes (2004-2011); Résister, responsabiliser, anticiper (2013); Aux quatre vents du monde. Petit guide de navigation sur l’océan de la mondialisation (2016), e De la grande Accélération à la grande Métamorphose (2017).