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Crônica de Machado de Assis Sobre um Socialista Russo no Rio

Crônica de Machado de Assis (com o pseudónimo Lélio) publicada em 13 de Janeiro de 1885 na coluna Balas de Estalo no jornal Gazeta de Notícias

A polícia acaba de apreender a seguinte carta de um socialista russo, Petroff, que se acha entre nós; é dirigida ao Centro do Socialismo Universal, em Genebra:

“Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1885.

Logo que cheguei a esta cidade, tratei de cumprir as ordens que me deu o Centro, no sentido de espalhar aqui os germens de uma revolução. Pareceu-me que o melhor era funda uma sociedade secreta, mas com espanto, soube que já havia um Clube de Socialistas, e que a tolerância do governo é tal,  que ele trabalha às claras. Pedi imediatamente um convite para assistir à primeira reunião; deram-mo e fui.

O pouco português que aprendi em Genebra, e mais tarde em Lisboa, facilitou-me a entrada no Clube. Fui um pouco antes da hora marcada. A diretoria, a quem disseram que eu era um ilustre estrangeiro (neste país todos são mais ou menos ilustres), recebeu-me com as mais vivas demonstrações de apreço e – consideração. Notei desde logo a presença de senhoras, e declarei que estimava ver que a mulher aqui já ocupava o lugar que lhe compete, ao lado do homem. Em seguida perguntei a que horas começava a coisa.

– Não tarda, disseram-me todos.

Eu levava um discurso preparado, verdadeiramente incendiário; copiei também algumas receitas de bombas explosivas, segundo me recomendam as instruções do Centro, e levei-as comigo.

Às nove horas comecei a ouvir afinar os instrumentos, e (veja como os costumes mudam de um país para outro) rompeu uma quadrilha. Compreendi logo que era um meio de agitar o sangue, até pô-lo no grau do movimento e temperatura apropriado à nossa santa obra. E essa inovação pareceu-me útil.

A diretoria apresentou-me uma senhora que me aceitou para seu par, e fui dançar com ela. Vi que era uma pessoa de fisionomia enérgica e resoluta; teria vinte e oito a trinta anos. Dançando, disse-lhe que estava entusiasmado com o Rio de Janeiro, onde não imaginaria achar o que achei. Ela sorriu lisonjeada, e declarou-me que sentia grande satisfação em ouvir tais palavras.

A nossa conversa foi interessantíssima, conquanto muita coisa me escapasse, pela presteza com que ela falava, e que, em geral, é a de todos que falam a própria língua. O estrangeiro, quando não está familiarizado, precisa de que se lhe articulem as palavras vagarosamente. Não obstante, pudemos trocar ideias, e até recolhi muitas notícias, que comunicarei no meu relatório. Uma dessas é que há outras sociedade análogas ao Clube, e com o mesmo fim.

A principal e a mais brilhante, disse-me ela, é o Cassino Fluminense. Ainda não foi ao Cassino?

-Não senhora.

– Pois vá, que vale a pena.

– Boa gente, não? Os verdadeiros princípios?

– Ah! O melhor que se pode desejar.

Acabada a quadrilha, seguiu-se uma polca, e logo depois outra quadrilha. Pareceu-me demais; eu já tinha o sangue em fogo; mas não houve remédio, e fui fazendo como os outros. As senhoras dançavam com ardor, que, se nesse momento déssemos uma bomba explosiva a qualquer delas, iria dali, logo e logo, deitá-la onde fosse conveniente à boa causa.

Eram onze horas, e nada de começarem os trabalhos. Eu impaciente, fui a um dos membros da diretoria, e perguntei de novo a que horas era a coisa.

– Não tarda, é à meia noite em ponto. Vamos agora a uma valsa.

Pedi-lhe dispensa da valsa, e fui fumar um charuto, em companhia de um sócio, que me pedia notícias da Rússia, e se lá havia algum clube de socialistas. Respondi-lhe que havia muitos, mas todos secretos, porque o governo não consentia nenhum público, e quando descobria algum, pegava dos sócios e mandava-os para a Sibéria. Não imagina o assombro do meu interlocutor.

-Ah! É bem duro viver em um tal país! Exclamou ele.

– Se é! Disse-lhe eu.

– Agora compreendo os atentados que por lá se têm praticado. Realmente, mandar para a Sibéria homens que apenas usam de um direito sagrado…

Expliquei-lhe bem o que era a Rússia, e concluí que, em geral, toda a Europa é um velho edifício que precisa cair. Nisto bateu meia-noite e passamos todos a uma sala interior, onde vi uma mesa cheia de comidas e bebidas, e nenhuma tribuna para os oradores. Foi engano meu, como vai ver.

Homens e senhoras sentaram-se e comeram. No fim de 15 a 20 minutos, levantou-se o presidente, e declarou que saudava, em nome do Clube de Socialistas, ao ilustre estrangeiro que ali se achava: era eu. Levantei-me e respondi com o discurso que levava de cor. Não posso dar ideia dos aplausos que recebi. Todas as teorias de Babel, de Cabet, de Proudhon, e do nosso incomparável Karl Marx, foram perfeitamente entendidas e aclamadas. Fizeram-se outros discursos, em que entendi pouco, por causa da língua, mas que pareceu-me animados dos bons princípios. Cada um deles era fechado por toda a reunião com o grito: Uê, uê, Catu! Suponho que é a fórmula natural do nosso brado revolucionário: Morte aos tiranos!

Um dos mais entusiastas era um militar, a quem fui cumprimentar, dizendo que estimava ver o exército conosco.

– O militar precisa de algum descanso, respondeu ele sorrindo.

Era uma alusão delicada à supressão dos exércitos permanentes, e eu apertei-lhe a mão de um modo significativo.

Mandarei mais pormenores por outro vapor. Ao fechar a carta, recebo o diploma de sócio honorário do Clube. País excelente; está todo nas boas ideias.

Crônica de Machado de Assis (com o pseudónimo Lélio) publicada em 13 de Janeiro de 1885 na coluna Balas de Estalo no jornal Gazeta de Notícias

Marcos Carvalho Lopes

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