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DA DIVINA COMÉDIA À (TRÁGICA) COMÉDIA HUMANA

ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Eva Trindade, Carlos Carvalho

Umberto Eco (num artigo publicado em 2000 no Magazine Littéraire com o título “Sur quelques fonctions de la littérature[1]) defende que “a língua, por definição, vai para onde ela quer, nenhum decreto superior, nem político nem acadêmico, pode interromper seu caminho nem desviá-lo para situações que se pretendem ótimas. A língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da literatura”.

Para o autor do Nome da Rosasem Dante talvez não existisse um italiano unificado (…), sem o seu modelo, talvez a ideia de uma unidade política nunca teria feito o seu caminho.

A literatura, contribuindo para formar a língua, cria uma identidade e uma comunidade. Eu falo de Dante, mas o que seria a civilização grega sem Homero, a identidade alemã sem a tradução da Bíblia por Lutero, a língua russa sem Pouchkine, a civilização indiana sem os seus poemas fundadores. Podemos acrescentar a importância de Shakespeare para a língua inglesa, de Camões para o português, de  Cervantes  para o espanhol, Victor Hugo para o francês (…).

Apesar da sua celebridade, Victor Hugo (1802-1885) reconhecia que o pensamento humano atinge em certos homens  a sua completa intensidade e cita Dante Alighieri (1265-1321) como um dos que marcam os cem graus do génio.

Dante apareceu, na Itália e no mundo, como o iconoclasta porta voz de uma nova(s) língua(s) literária(s) (De vulgari eloquentia), antes dos renascentistas, emigrando do latim (através  de uma apologia em latim) para  o(s) vernacular(es), as línguas do vulgo, sublinhando assim, e à maneira de Leibniz, a dignidade desses falares populares; o português, o francês (…) que hoje se arrogam – no desprezo das línguas africanas – , e de uma maneira que recorda o etnocentrismo helénico, a sua exclusividade de fazer parrésia (falar livremente e dizer a verdade), do logos (pensar), de fazer dia-logos.

Cáustico, Dante entrou com audácia e atrevimento no que ele estimava serem os verdadeiros problemas do seu tempo; ele queria apreendê-los em todos os domínios, do poético ao político, do filosófico ao teológico.

A dissidência literária engajava toda a sua pessoa e não era uma simples postura intelectual e estética. Foi intelectual  antes de Voltaire (que Rorty considera o supra-sumo do intelectual) e do caso Dreyfus (a partir do qual o adjectivo foi cunhado);  defendeu a laicidade antes dos iluministas  e antes que a intolerância das teologias políticas degolassem as nossas mulheres e crianças. Fê-lo teoricamente na obra De Monarchia e, politicamente, engajando-se  no seio dos Guelfos Brancos que apoiavam o papa, mas defendiam a autonomia do governo da cidade das ingerência do pontífice, o que lhe custou um doloroso exílio, como muitos Mudimbes e Jean-Marc Elas (…), depois dele.

Assim como esteve implicado nas principais aventuras da  vida intelectual de  Florença, da mesma maneira, foi tentado por diferentes formas literárias: sonetos, canções,  baladas, sextinas  (…). Com carácter filosófico escreveu Il Convivio, onde apesar de mencionar Aristóteles e São Tomas de Aquino – como de praxe na época – parece inspirar-se, metaforicamente, n’ O Banquete de Platão, juntando ao título daquele, um verdadeiro banquete com 14 pratos (simbolizado por canções),  acompanhados de pão (comentários).

A obra mais  emblemática de Dante é, sem duvida,  a Comédia (escrita durante o exílio), poema épico  onde, através de artifícios teológicos, filosóficos, éticos e  políticos,  aborda a trajectória da sua alma. Esta obra prima, foi sublimada  por um outro escritor italiano, Boccaccio, com o epíteto de “Divina”; pela harmonia da sua concepção, pela unidade e lirismo que parecem inspirados por um ser transcendental e pela sua trajectória: uma viagem no além, que leva o poeta a percorrer o Inferno, o Purgatório até chegar ao Paraíso. Nas duas primeiras etapas, ele é guiado por Virgílio (o maior dos poetas latinos) que – por ser pré-cristão e não ter recebido a graça – não pôde atravessar a porta do paraíso, onde o poeta entra  acompanhado  por Beatriz, símbolo de pureza, de santidade e da ciência divina.

No estilo dos templos gregos, no portal do inferno (onde os condenados estão distribuídos pelos sete pecados capitais e pelas disposições viciosas da alma: incontinência,  violência e fraude)   está escrito: “Perante mim não há coisa criada / sem ser eterna, e eu eterno duro / deixai toda a esperança, vós que entrais”.

No canto VI, entre os gulosos,  o poeta encontra um personagem de nome Ciacco (porco) a quem ele coloca algumas questões e que lhe responde com uma profecia de mau agouro: a cidade de Florença (podia ser Moçambique) irá cair no caos e em lutas intestinas, devido a três factores: soberba, inveja e avareza. Os “justos”, como a vox clamantis in deserto ou todos os tambores de Moçambique tocando ao mesmo tempo (D. Jaime), não serão ouvidos. Por isso a cidade soçobraria, enquanto aguarda um príncipe (Maquiavel) ou um Leviatã (Hobbes) para apaziguar as facções e governar com justiça.

No canto VI do Purgatório, diante do poeta Sordello de Goito (originário de  Mântua, como Virgílio), Dante insurge-se contra a Itália, que define como “serva Itália, da aflição morada! / Nau sem piloto em pego tormentoso! / Rainha outrora em lupanar tornada!” E conclui dizendo: ‘os com bons espíritos e boas palavras preferindo calar, contribuem para a decadência da cidade’.

Finalmente, no canto VI do Paraíso, já em companhia da Beatriz, o poeta encontra Justiniano, imperador Romano de Oriente (de 527 a 565), autor do Corpus Iuris Civil e símbolo doideal de um império terreno de paz e justiça, para além das desavenças que caracterizam o mundo dominado (hoje mais do que nunca)  por um individualismo sistémico.

Se Dante Alighieri fosse moçambicano, qual dos nossos poetas teria levado consigo: Noémia de Sousa, Craveirinha ou Kalungano? Talvez Samora Machel. Apesar de se lhe não conhecer nenhuma veia poética,  o florentino, que afeiçoava diferentes géneros literários, teria admirado nele, a loquacidade, a eloquência, mas sobretudo, o seu arreigamento à causa da justiça. Mesmo sem o génio político e a cultura jurídica de Justiniano – e até, por vezes, de maneira atabalhoada e pouca canónica – ele quis fazer da integridade física do país, e moral dos moçambicanos, o essencial do seu engajamento existencial.

 Com rara clarividência, previu e denunciou na concupiscência e divisionismo (de tribo, religião e raça), os males que levariam Moçambique ao caos e a lutas intestinas. Vociferou contra os mosacanas e pedintes com costela percentualista, advertindo-os, que mesmo se sepultados em sarcófagos de ouro não comprariam o paraíso, mas condenar-nos-iam a regressar à danação do inferno da dominação e da opressão.

Passaram setecentos anos desde que Dante escreveu a Comédia, depois chamada Divina. A comédia perdura. Mas o cinismo, a vigarice, o sadismo com que as potestades das nações e do mundo (muitas vezes em conluio) governam; a requalificação de  vícios em virtudes; e sobretudo a banalização do mal que Hannah Arendt identificou no genocídio dos judeus, mas já estava presente com a escravatura e hoje perdura com massacres e deportações das populações em Cabo Delgado. Tudo isso faz da nossa  actual  comédia, diabólica e tragicamente humana.

Dante não foi profeta mas um escritor de génio. Os seus juízos e advertências vão para além do lugar e do tempo. A Comédia de Dante representa um julgamento (intemporal) moral e político, mas também o sonho de modificar a humanidade, desvelando-lhe a verdade do homem e da existência – na Florença da Idade Média como no Moçambique de hoje.

Na efeméride dos setecentos anos da morte de Dante Alighieri, a tribo dos italicus, vai celebrar  Il Sommo Poeta com fasto, urbi et orbes, esquecendo até, intra muros, que a justiça justiniana não conhecia metecos e compreendia reconhecimento da cidadania igual a todos (Constituição Antoniana de Caracalla), para além da raça, da origem ou da religião; que a pretensão da sua Roma (mobilis, augescens) era dar e levar a lei (fazer concórdia) a todos os povos do mundo.

Nós, neste Moçambique – que pena a nascer e crescer como país e como povo – sucumbimos à trágica realidade do mal;  deambulamos, como zumbis, do inferno ao purgatório  e do purgatório ao inferno, com o paraíso (paz e justiça) sempre mais distante. Mas a exigência do bem é de tal maneira forte que, livres em nós mesmos (Langston Hugues) e estóicos (abstine et sustine) às vicissitudes dos tempos, nos impomos continuar  a nossa dantiana trajectória, com o paraíso (paz e justiça) como destino.

Devemos isso a muita dor, a muito sofrimento, a muita morte. Mas, ainda mais, àqueles que, obstinadamente, continuamos a trazer à comédia  trágica da existência humana.

Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Eva Trindade, Carlos Carvalho


[1] Publicado parcialmente em português como A literatura contra  efemero. Folha de São Paulo 18/02/2001. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1802200105.htm e em sua totalidade em ECO, Umberto. Sobre algumas funções da literatura. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Marcos Carvalho Lopes

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