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Da Ogonilândia a Cabo Delgado – Poluição, pobreza e morte


«Eu acuso o governo e as multinacionais petrolíferas de destruir o ecossistema, de apropriar-se ilicitamente das terras e de condenar o povo à miséria»
Estas acusações não foram proferidas por nenhum maconde, macua ou muani de Cabo Delgado; estas graves acusações foram proferidas por Ken Saro-Wiwa, intelectual (escritor, editor, dramaturgo) considerado pai da ecologia política (antes da ambientalista e prémio Nobel da paz, Wangari Maathai), cuja luta lhe valeu o prémio Nobel alternativo.
Nos “Intérpretes”, o Nobel da literatura Wole Soyinka, pinta um quadro romanesco idílico (na contramão das tendências actuais de fuga obrigada para novas formas árabes de escravatura e de morte no Mediterrâneo – europeiamente teleguiadas) de regresso voluntário das elites yorubas de Londres, a fim de participarem no desenvolvimento da Nigéria que nascia. O consenso em voltar e participar na edificação da África era extensivo aos membros da negritude (Senghor, Dia, Touré…) em Paris, como aos cabrais, netos, marcelinos – e mondlanes, de passagem – em Lisboa. Porém o consenso em regressar escondia um dissenso fundamental – para além das diferentes orientações ideológicas – quanti ao significado das formas de engajamento. É que naqueles anos, escritores, poetas, pintores e activistas tinham a sorte e a responsabilidade de decidir, por eles próprios, o lugar que, como intelectuais, deviam ocupar na sociedade. Os moçambicanos foram poupados dessa escolha dantesca, porque, como intimava kalungano na poesia de combate, “o meu lugar é para onde o partido me manda”, o que prevaleceu até ao desconstrucionismo do movimento da charrua.
Na década do “soleil des indépendences” os intelectuais dividiram-se entre os que consideravam as artes e a escrita, já de per se, ‘engajamento’ e aqueles que defendiam uma arte militante, comprometida com as preocupações e a vida das populações. Foram lendárias as controversas que então opuseram a negritude de Senghor e a tigritude de Wole Soyinka, o que correspondia a duas diferentes maneiras de pensar o futuro do continente: de um lado, o senghoriano – depois afrocentrista e Ubuntu – retorno às origens, (que aliás tinham estado já na organização dos congressos – antropológicos – dos artistas e escritores negros de Roma e Paris na década cinquenta) e, do outro, o (proto)afro-futurismo de Soyinka – coadjuvado pelas dissidências intelectuais do ex-discípulo de Césaire, Frantz Fanon, contra uma negritude que se limitava a uma museificação passadista da África.
Uma controvérsia menos publicitada, mas não menos incisiva (sobretudo na universidade de Ibadan) opôs, em muitos debates públicos o prémio Nobel da literatura (Soyinka) ao prémio Nobel alternativo Ken Saro-Wiwa. Enquanto o primeiro defendia que a literatura era já em si mesma um engajamento e deveria se considerar felizarda se participasse a alargar os horizontes mentais, intelectuais e morais das pessoas, Saro-Wiwa, que fora presidente da associação nigeriana da literatura, via no momento que África atravessava, o imperativo de uma intelectualidade e, por isso mesmo, de uma literatura mais em sintonia com a vida das populações .
As diferenças entre Soyinka e Saro-Wiwa eram de forma e de conteúdo. O aristocrático Nobel da literatura escrevia num inglês muito british (com marcas mais da sua passagem nas universidades de Leeds e Londres do que da de Ibadan) ao gosto dos salões, até de Estocolmo.
Saro-Wiwa, primeiro produziu uma série televisiva muito popular na Nigéria, que acabou dando cartas de nobreza ao género na Nolliwood e depois, na década setenta, quando a literatura africana saiu das garras dos temas da negritude e tigritude, ele dá um passo em frente e publicou aquilo que seria a sua obra prima, Sozaboy; com a qual se revela como umas das grandes vozes da África pós colonial. Nesta obra, num inglês popular, o escritor reactualiza a figura trágica da criança soldado (a figura mais célebre do fim do século XX, como escreveu Ahmadou Kourouma no seu romance Allah n’est pas obligé) e denuncia os horrores da guerra, contando as aventuras e o sofrimento de um jovem soldado durante a guerra do Biafra. Aliás, o conjunto dos temas que ele trata nos seus livros (guerra, condição da mulher, corrupção, tribalismo) caracteriza-o como autor engajado, convencido de que, na situação crítica em que se encontra o continente africano, o escritor não pode se dissociar da vida política e social do seu país.
Depois, consequente com os seus princípios, ele põe a sua pena ao serviço da causa do seu povo e funda o MOSOP (movimento para a sobrevivência do povo Ogoni) e com ele denuncia, com veemência, os exploradores das terras e as companhias petrolíferas Shell e Chevron de, em conluio com o governo, poluírem o ambiente, esvaziarem as terras e deixarem as pessoas morrer de fome. Ele reivindicava para o seu povo uma parte justa das riquezas petrolíferas do seu solo e compensações pela sua devastação do pelas companhias petrolíferas. Pioneiro da ecologia política, ele alertou a opinião mundial sobre os desastres ecológicos ligados à exploração do petróleo no delta do Níger.
Como poucos senecas, Soro-Wiwa levou as suas convicções até às últimas consequências, tendo sido condenado à morte por enforcamento (o que foi levado avante apesar dos protestos de todo o mundo – inclusive de moçambicanos – pelos militares da ditadura então vigente na Nigéria). Diferentemente do caso de Ângela Davis – dos black panthers – em que justiça dos EUA, pela força da vox populi, foi obrigada a recuar e fazer a justiça justa. No caso de Saro-Wiwa, nem os pedidos de Bill Clinton (então presidente dos Estados. Unidos), de John Major (então primeiro-ministro britânico), do ícone Mandela e do companheiro da dialéctica literária e Nobel da literatura, Wole Soyinka, conseguiram apaziguar a sede de sangue desse Nero chamado Sani Abacha, a quem Saro-Wiwa apelidava de Leviatã. Durante a derradeira tentativa da Commonwealth em Auckland (Nova Zelândia ) de evitar o assassínio, as petrolíferas demonstraram a própria cumplicidade ironizando com Soyinka: «tu és dramaturgo, não estarás a dramatizar demais?».
Nesse 10 de Novembro de 1995, Saro-Wiwa e os seus cinco companheiros foram acordados às 5 da manhã e conduzidos, algemas nos pés e nas mãos, ao lugar de execução da sentença, na prisão de Port-Harcourt, onde foram enforcados .
Conta a lenda que o carrasco teve que tentar cinco vezes antes de lhe quebrar a nuca. As testemunhas do seu assassinato dizem que as sua últimas palavras foram: “o mundo viu como o povo Ogoni se revoltou; Viu que o governo nos engana, que as elites corruptas financiam as sua vidas luxuosas e a Shell está a destruir-nos; podem matar o mensageiro mas não a mensagem”.
A mensagem sobreviveu e foi acatada até pelas ONGs (Greenpeace, The Body Shop, Les Amis de la Terre, Amnesty Internacional, Human Rights Watch ) que se tinham anteriormente mostradas pouco sensíveis ao drama dos ogonis; a Shell retirou-se e indenizou as populações e hoje, depois dos Kenneths e Idais em miniaturas nos países que contam, as mudanças climáticas tornaram-se uma evidência e um imperativo global, mas ainda não a justiça, apesar dos sofrimentos dos cabo delgados pelo mundo fora.
Se a grandeza da literatura reside na sua capacidade de exprimir, com amplitude, particularidades que vão para além do tempo e do lugar, Soyinka e Saro-Wiwa foram e são dignas ilustrações. Os Intérpretes é um clássico da literatura africana e mundial; as proféticas denúncias de Saro-Wawi perduram no tempo e estenderam-se no espaço: petróleo, interesses, roubo de terras, deslocação de populações, pobreza e morte são o quotidiano dos OGONIs de Cabo Delgado; macondes, macuas, munais juntos. Isto é , moçambicanos.
Cada órfão, cada viúva, cada deslocado, é uma veemente acusação contra a concupiscência dos petrodolaristas – políticos, multinacionais, governos, gangues, religiosos fanáticos – que elevam o dinheiro e os seus interesses, a valores supremos da existência.
Mas onde está a indignação de todos os abusados, espoliados, menosprezados e de todo o cidadão íntegro e espectador passivo do desprezo dos poderosos e seus apaniguados e sicários? Onde está a indignação dos moçambicanos pelo que testemunhamos aqui neste País? (ou será por não os termos suficientemente fortes?).


ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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