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De como Russell leu Wittgenstein

A filosofia é como um labirinto, aparentemente sem levar a lugar nenhum, ainda é um caminho

          

  No início de sua célebre Introdução ao Tractatus, Russell reconhece que está frente a uma obra de grande alcance e profundidade — apesar de não evitar ser um pouco irônico. Assim ele começa suas considerações:

O Tractatus Logico-Philosophicus do Sr. Wittgenstein, seja que consiga ou não fornecer a verdade última sobre as questões que trata, certamente merece, pelo seu fôlego e escopo e profundidade, ser considerado um evento importante no mundo filosófico.

            Como disse anteriormente, essa obra ajuda a consolidar uma das mais importantes correntes de pensamento filosófico do século XX. Ela está por trás de obras que levaram a resultados importantes na lógica, na filosofia da lógica, na filosofia da linguagem e na filosofia da ciência — áreas em que os filósofos analíticos mais atuaram.

            Na sua obra, Wittgenstein assume posições extremas. Com efeito, ele dispensa como carente de sentido praticamente todo o pensamento filosófico ocidental. E o que chamaria nossa atenção sobre isso é seu texto, o Tractatus. Não é pouca coisa, evidentemente. Apesar de tal pretensão, Wittgenstein reconhece sua dívida a Frege e Russell. Nos escritos desses pensadores, no entanto, não encontramos a radicalidade das afirmações sobre a filosofia que encontramos no Tractatus. Daí a sutil ironia de Russell ao iniciar sua Introdução: seja que consiga ou não fornecer a verdade última sobre as questões que trata. Pois era isso que o Tractatus pretendia, ser a última palavra sobre as questões que tratava e, no fundo, acabar de vez com o tipo de filosofia que conhecemos desde os gregos até a época em que apareceu o Tractatus. Como bem diz Russell no início do primeiro parágrafo da Introdução, Wittgenstein pensava que a filosofia tradicional e os resultados a que chegara não eram mais do que a conseqüência da ignorância dos princípios da lógica simbólica e do uso equivocado da linguagem. De fato, isso descreve bem a “leitura” que Wittgenstein tinha da filosofia tradicional — o que o filósofo vienense pretende mostrar na sua obra.

            O curioso é que Wittgenstein quer mostrar mas não dizer. Pois, como ele mantém, há coisas que não podem ser, propriamente, ditas, mas mostradas, como quando alguém aponta com o dedo em direção a algo. Para o filósofo, a linguagem está para falar sobre os acontecimentos do mundo. Qualquer outro uso da linguagem é um uso equivocado. Como o que ele mesmo faz, já que o Tractatus não fala sobre os eventos do mundo, e sim sobre formas de falar do mundo, a forma filosófica, por exemplo. Desse modo, e segundo suas próprias teses, só fazemos sentido, ao falar, quando afirmamos ou negamos fatos do mundo. Podemos, nesse caso, dizer coisas verdadeiras ou falsas. Mas quando falamos sobre a linguagem, como um todo, ou sobre o mundo, como uma totalidade, não estamos, propriamente, fazendo sentido pois eles não são objetos no mundo. Vejamos uma passagem já citada por mim em que podemos ver claramente a leitura que Russell fez dessa posição:

O Sr. Wittgenstein mantém que tudo o que é propriamente filosófico pertence ao que só pode ser mostrado […] Isso resulta de sua teoria de que nada correto pode ser dito em filosofia. Toda proposição filosófica é gramática ruim, e o máximo que podemos esperar alcançar por meio de uma discussão filosófica é levar as pessoas a ver que a discussão filosófica é um erro.

Temos, então, estas opções: se discutimos as questões filosóficas como o fizeram sempre os filósofos, não fazemos o menor sentido. Se, ao contrário, discutimos como Wittgenstein quer, o melhor que podemos esperar é concluir que toda discussão filosófica é um erro! Nos dois casos não chegamos a nenhum conteúdo positivo, com a diferença de que no segundo chegamos a ter ciência disso. É por isso que, segundo Wittgenstein, “o objeto da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações”. (Proposições 4.111 e 4.112, citadas por Russell). Aqui há um paradoxo, que é apontado por Russell assim:

De acordo com esse princípio, as coisas que devem ser ditas ao se levar o leitor a entender a teoria do senhor Wittgenstein são, todas elas, coisas que a própria teoria condena como carentes de significação.

Assim, estamos frente a dois resultados paradoxais, um interno e um externo: (1º) Tudo aquilo que se diz filosoficamente não faz sentido (nem mesmo isto que acabo de escrever). (2º) A visão de Wittgenstein, como o próprio Russell a chama, é uma teoria filosófica que, surpreendentemente, nega a existência de teorias filosóficas!

Em poucas palavras, o Tractatus todo é um conjunto de proposições que não fazem sentido. Sobre o que, aliás, o próprio Wittgenstein adverte. A obra toda não trata eventos do mundo, fatos, mas sobre o que não é um evento no mundo, a linguagem e o próprio mundo. Por tudo isso, num dos últimos parágrafos da sua Introdução, Russell afirma lapidarmente:

O Sr. Wittgenstein dá um jeito de dizer um bom bocado sobre o que não pode ser dito, sugerindo assim para o leitor cético a possibilidade de que deve haver por aí alguma escapatória por meio de uma hierarquia de linguagens ou por meio de alguma outra saída.

Chegamos, assim, a mais um resultado inesperado. Temos um texto que, entre outras coisas, se propõe provar que a própria filosofia, como a conhecemos, descansa no erro básico que determina que a maioria de suas proposições não digam nada, e, mesmo assim, é um texto de alto valor filosófico. Isto interessa notar: a filosofia é tal que existe, e continua a existir, até naquelas obras que fornecem os fundamentos para provar sua inexistência ou sua falta de significatividade. Ao se negar o valor de toda e qualquer filosofia, ainda pode se fazer filosofia. Perdidos na floresta negra da nossa ignorância, e aparentemente andando em círculos, ainda podemos chegar a algum lugar.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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