A refutação do velho Parmênides, levada a cabo por Platão, consistiu em provar a impossibilidade de que só o ser é, demonstrando-se a necessidade da existência do ser e do não-ser
Gonçalo Armijos Palácios
Se pensamos em tudo o que existe e necessariamente deve existir, e perguntamos sobre suas propriedades essenciais, nos afastamos do plano imediato das coisas sensíveis. Pois muitas coisas são ou existem, além das visíveis. Ao perguntarmos pelas propriedades essenciais de tudo que existe, de tudo que é, de tudo que há, levantamos questões metafísicas. Um dos mais provocativos e difíceis textos filosóficos, escrito aproximadamente 500 anos antes de Cristo, é o célebre Poema de Parmênides. Nele se discutem, em linguagem metafórica, duas questões centrais à filosofia: a natureza do ser e a questão do não-ser. É, pois, um dos primeiros textos metafísicos.
No seu poema, Parmênides afirma que o que é só pode ser, e o que absolutamente não é, absolutamente não pode ser. Mas, ao mesmo tempo, estabelece uma distinção entre essência e aparência, pois reconhece que as aparências envolvem todas as coisas. O ser das coisas, assim, está oculto pelas suas aparências.
Nos artigos anteriores tenho discutido algumas passagens de Platão que encontramos no diálogo O Sofista. Esse diálogo está diretamente motivado pelos problemas que surgem da tese radical de Parmênides de que o ser é e o não-ser não é. E tudo isso, por sua vez, diz respeito à relação entre dialética e sofística. Vejamos por quê.
Se Parmênides estivesse completamente certo ocorreria o seguinte: tudo passaria a ser. Com efeito, atribuir não-ser às coisas seria impossível. Que significa atribuir não-ser as coisas? Dizer, por exemplo, “isso não é”, ou “isso não é assim”. Ora, nós usamos a toda hora esse tipo de expressões, pois sabemos que as coisas são de certas maneiras e não são de outras. Nós mesmos somos de um jeito mas não somos de todos os jeitos possíveis. A verdade e a falsidade, perceba-se, dependem da existência tanto do ser como do não-ser. Pois se as coisas não são de uma certa maneira, afirmar que são dessa maneira seria falso. Para que o falso seja possível, as coisas só podem ser de determinados modos e, ao mesmo tempo, não ser de muitos outros. Mas Parmênides, no seu célebre poema, adverte: “Jamais obrigarás os não-seres a ser”. O não-ser, ele mantinha, é impensável e indizível.
Platão, na sua juventude, acreditava nessas teses metafísicas de Parmênides sem perceber os problemas que elas implicavam. Mas, com o passar do tempo e a ajuda dos sofistas, percebeu seu erro e se viu forçado a se afastar do seu mestre, do “Pai Parmênides”, como o chama no mencionado diálogo. O que as teses de Parmênides implicavam não era outra coisa que a destruição do próprio conhecimento. Vejamos como.
Com efeito, se só o ser é, ou, então, se tudo o que é, é, obviamente que tudo o que alguém poderia dizer passaria imediatamente a ser verdadeiro. É impossível sequer pensar o não-ser, dizia Parmênides, pois o pensamento e o ser estão intimamente ligados. Aliás, são idênticos. Pensar e ser são a mesma coisa. Para entender isso peço que se imagine um cavalo alado. Se o leitor e eu estamos pensando num cavalo alado, é óbvio que tal cavalo alado de alguma maneira existe, de alguma maneira é. Está sendo objeto do nosso pensamento. Mesmo que exista como um produto da nossa fantasia, como uma figuração da nossa imaginação, ele é. De maneira análoga, não posso dizer “Chapeuzinho Vermelho não existe” ou “não é”. O Chapeuzinho Vermelho é, mesmo que seja como um ente fictício. Se é verdade que o pensar está intimamente atrelado ao ser e só ao ser e que, por outro lado, é impossível pensar o não-ser, então tudo o que possa ser pensado passa a ser, pelo mero fato de ser pensado. A conseqüência disso tudo é que uma vez pensada ou dita qualquer coisa, pelo fato de ser pensada e dita assume estatuto definitivo como parte do ser. Desse modo, tudo o dito passa a ser verdadeiro. Por quê? Porque se eu digo que Chapeuzinho Vermelho é desobediente e alguém me dissesse que isso é falso, que Chapeuzinho Vermelho não existe, eu poderia dizer: quem não existe? Mas se a pessoa responde “o Chapeuzinho Vermelho”, eu retrucaria: “você acabou de mencionar e ainda nomear algo que diz que não existe, mas se o mencionou e ainda nomeou, então existe, seja do jeito que for! Para nomear algo esse algo deve, de alguma maneira, ser”.
Que tem tudo isso a ver com Platão? Que os sofistas se amparavam na tese de Parmênides para provar que tudo o que eles diziam era verdadeiro. Se Platão, por exemplo, discutindo com eles concluía que o que eles diziam era falso e que, portanto, não era, eles podiam retrucar: “como ‘falso’ se o não-ser, como dizia Parmênides, absolutamente não é?”
Assim como antigamente, hoje também podemos encontrar textos e ouvir palestras que se escondem na impossibilidade do não-ser, pois se baseiam na tese de que tudo o que se diz, se escreve ou se ensina aos alunos é. Como desmascarar os sofistas de ontem e hoje? Com a velha dialética. Mas como, se o debate que busca a verdade e quer mostrar o erro é evitado a qualquer custo?
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |
Se pensarmos da maneira que Parménides defendera, podemos incorrer no mesmo relativismo dos sofistas, segundo o qual, “o homem é a medida de todas as coisa. Das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são.” Portanto, Platão, bebendo a sabedoria de seu mestre, Sócrates, afirmava que se a verdade é relativa, ou seja, depende do sujeito cognoscente, então, não haveria nada que fosse ensinado. Por outro lado, não haveria nenhuma norma moral, nem uma verdade, segundo a qual, os seres humanos procurassem encontrar. Logo, a existência humana seria um vazio.