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Disciplina é Liberdade

Kant, Renato Russo e o Fato da Razão

por Marcos Carvalho Lopes

A questão sobre se existe ou não liberdade é fundamental para se pensar a ética. Se o homem não é livre para agir, não pode ser responsável por sua ação. Se não existe liberdade, ninguém pode ser considerado criminoso. Com isso, cria-se a “ética dos coitadinhos” que diz que a culpa pelas coisas que não estão certas não é de ninguém determinado, nem de todos em conjunto: o culpado é o “sistema”, o impessoal. Seguindo esse discurso, as pessoas podem reivindicar para si todos os direitos sem carregar consigo nenhum dever: afinal, “todo mundo quer tirar vantagem em tudo” e, por consequência, ninguém quer ser responsável por nada.

Acontece que, como percebeu Kant, a liberdade não é um fato exterior, é sim um fato (feito) da razão: o homem pode prescrever para ele mesmo regras de conduta, ante as quais ele mesmo é legislador e executor. Ou seja: quem se obriga a si mesmo é livre para se desobrigar. Isso acontece na prática: quem assume um compromisso consigo mesmo não está comprometido com ninguém, então é livre (ou “você não pode jogar essa folha longe e esquecer esse texto?” ou “você não é livre para escolher isso?”). Essa ideia foi reafirmada na letra da música Há Tempos da Legião Urbana. Nela, Renato Russo diz: “disciplina é liberdade”. Falar em disciplina como sinônimo de liberdade pode ser visto como algo fascista, mas Russo explicou sua posição em entrevista: “eu estou falando de autodisciplina. Se você pensar numa relação sujeito-objeto, é fascista, mas numa relação sujeito-sujeito, não é. Não é: ‘eu vou disciplinar você’. A natureza é disciplinada. Eu preciso de muita disciplina! Fica tão bonito escrito ‘Disciplina é liberdade’. E é uma inversão do double think do 1984: ‘Liberdade é escravidão’, ‘Ignorância é força’. Se você tiver um conceito legal de liberdade, imediatamente surge uma ideia positiva.”

Se “disciplina é liberdade”, o homem é livre e responsável por suas ações. Disso, pode deduzir que, para viver em grupo, deve agir como se sua ação pudesse ser comum a todos os demais, ou seja, seguir a regra do senso comum de “não fazer aos outros o que você não quer que seja feito a você”. Kant não pensava numa sociedade de anjos: regras são necessárias mesmo em uma sociedade de demônios. Os homens são racionais, livres e responsáveis pelo seu agir (ou não agir). O Estado, a televisão, “o sistema”, não são sozinhos os culpados pelos problemas sociais, afinal, a sociedade é feita também de homens individualmente responsáveis. Como diria Ortega y Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias, se não me salvo a elas, não me salvo a mim mesmo”, ou seja, o homem está sempre imerso em circunstâncias que não escolheu, mas pode decidir entre lidar com elas ou se deixar levar pela correnteza, como uma bóia jogada no rio. Pode decidir compreender sua circunstância, sua responsabilidade e sua liberdade ou cantar o samba do “deixa a vida me levar”. O fato é que você (também) decide.

Texto publicado originalmente em:

LOPES, Marcos Carvalho. Disciplina e Liberdade. Discutindo Filosofia (Cessou em 2008. Cont. ISSN 1984-1388 Conhecimento Prático Filosofia), p. 22 – 22, 05 abr. 2006.

Este foi o primeiro texto postado na página filosofia pop: da alquimia de totem e tabu criada em 2006 em parceria com Murilo Ferraz e com textos de Janos Biro e Eduardo Ferraz. Esta página ficava no Overmundo e chegou a merecer o nome de pop!

Marcos Carvalho Lopes

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