ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Eva Trindade e Carlos Carvalho
É hoje um lugar comum dizer que a História é escrita pelos vencedores, e, por isso, as grandes figuras históricas; Júlio César, Napoleão Bonaparte, Churchill, De Gaulle, (…) são celebradas porque as interpretações das suas epopeias – mesmo quando compreendem escravatura, colonização, massacre de povos – são lidas e interpretadas, a partir da visão unilateral dos vitoriosos, que se arrogam o direito de dizer o que é a verdade e o justo humanos.
Ter escravizado, massacrado povos, pode ter uma conotação histórica positiva, e até valer a heroicidade histórica, se isso se realizou em nome e em função das partes e causas que a posteriori resultam ‘justas’, porque vencedoras.
Assim, o mitómano Bush pode ter destruído o Iraque, o corruptor Sarkozy a Líbia, o ‘socialista’ Mitterrand sido cúmplice no genocídio dos Tutsis e, hoje, o sionista Netanyahu responsável pela martirização dos Palestinos, mas esses são tratados como pecados veniais, nunca razões suficientes para mobilizar o Tribunal Penal Internacional porque, os povos sacrificados eram para o mundo que conta, seres menores, cuja vida não releva daquilo que se chama dignidade humana.
O que não se perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o de ter aplicado a Europa processos colonialistas a que até então só os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África estavam subordinados.
Este juízo severo e lapidar, vem de um desses homens raros, Aimé Césaire, que mereceu reconhecimento e devoção dos dois lados antagónicos da História
Do lado dos vencedores, ironicamente, Césaire teve assento na Assembleia da República (lugar outrora ocupado por homens lendários, como Robespierre, Marat e outros da grande Revolução); filosoficamente, antecipou-se na ruptura e denúncia (carta a Maurice Thorez) do ‘marxismo’ estalinista, quando nele ainda soçobravam grandes gurus como Alhtusser, Lukács, Togliatti. Do ponto de vista literário, foi considerado por André Breton a maior expressão do surrealismo e, ao lado de Victor Hugo, Maupassant e outros gigantes da literatura, é leitura obrigatória nos manuais escolares franceses e, honra suprema, foi imortalizado no Panteão, ao lado dos “deuses laicos” da secularização republicana: Rousseau, Voltaire, Diderot….
Porém, o seu verdadeiro lugar histórico é ao lado dos vencidos, o que ele mesmo escolheu, desde a publicação do Cahier d’un Retour au Pays Natal, em 1939, onde advoga e milita por uma África que se ergue (surge et ambula) da opressão e da colonização.
Com Senghor e Damas foi arauto – em Paris – da negritude, movimento literário, depois substrato teórico da luta para a emancipação política dos povos africanos de língua oficial francesa. De volta à Martinica, criou a revista Tropiques através da qual influenciou personagens literárias e políticas como Franz Fanon, Édouard Glissant, Joseph Zobel, Georges Desportes …
Um dos seus trabalhos menos conhecidos, mas não menos importante, é o Discurso sobre o Colonialismo (publicado em primeira edição em 1950) no qual ele mobiliza recursos da filosofia, da antropologia, da literatura, da política para desconstruir (antes de Derrida) a pseudo superioridade da civilização Ocidental que, aliás, ele acusa de ser moral e espiritualmente indefensável.
No prefácio da edição portuguesa (traduzida pela moçambicana Noémia de Sousa), Mário de Andrade – apesar dos trabalhos de Mongo Beti, Sembène, ou Chinua Achebe – defende que ele “é o requisitório mais virulento que um escritor negro jamais lançou, com tamanho talento, ao rosto dos opressores…” O “Discurso sobre o Colonialismo” inscrevia-se de chofre no âmago do principal acontecimento que, no amanhã da Segunda Guerra Mundial, modelava o devir dos povos saqueados pela história, a saber: a reconquista da identidade, materializada pela luta de libertação nacional.
Situado no próprio terreno duma intelligentsia europeia, lá onde ela pretendia ser a única a julgar os homens, a valorizar as culturas e a compreender as sociedades… Césaire compõe este discurso (no sentido literal do termo, como era entendido no século XVIII) para expor e, de caminho, pulverizar a falaciosa argumentação dos grandes pontífices do saber universal”.
A essência do discurso está encerrada nas formulações que Césaire faz, de chofre, logo no início do texto: uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente; uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é uma civilização enferma; uma civilização que trapaceia com os seus princípios, é uma civilização moribunda. E, por isso mesmo – conclui ele no fim do ensaio – a Europa (colonial) é indefensável.
Césaire denuncia na colonização a coisificação do humano que se manifesta nas sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas; ele faz referência a milhares de homens sacrificados (…), de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à vida, à dança, à sabedoria; de milhões de homens a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo; economias desorganizadas, culturas de subsistência destruídas, de subalimentação instalada (…); abusos (de poder) detestáveis em detrimento dos povos.
O texto termina com uma intimação: se a Europa não tomar a iniciativa duma política das nacionalidades, a iniciativa duma política nova fundada no respeito dos povos e culturas (…) terá perdido a sua derradeira oportunidade e, por suas próprias mãos, puxado sobre si o lençol das trevas mortais.
Segundo o sociólogo suíço, Jean Zigler, a diferença entre a Europa e a África é que naquela, foram as nações (natura) que fizeram os Estados e nestes Estados nasceram partidos; em África, foram os partidos que fizeram os Estados e estes deram -se, como missão, construir as nações.
Quaisquer que sejam as linguagens, os manifestos ou as retóricas políticas, os objectivos de libertação eram, não só – negativamente – combater o indefensável colonialismo do ocidente (programa fraco) mas, sobretudo – positivamente – construir na linguagem das “Armas da Teoria” de Amílcar Cabral, uma sociedade de paz, progresso e felicidade dos nossos povos (programa forte).
É avassalador constatar, que o libelo de Césaire de 1950, contra o então Estado colonial se ajusta, como luva, às praticas dos países governados pelos antigos libertadores. A coisificação passou do estado colonial ao pós-colonial, por isso é a actualidade de “sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas; de homens sacrificados (…), de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à vida, à dança, à sabedoria; de milhões de homens a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo; economias desorganizadas, culturas de subsistência destruídas, de subalimentação instalada (…); abusos (de poder) detestáveis em detrimento dos povos”.
O Estado pós-colonial, como o colonial, parece também trapacear com os próprios princípios. Sendo assim, a advertência aos europeus de 1950 seria também aplicável ao estado pós-colonial por – volvidos cinquenta anos – não ter tomado a iniciativa duma política das nacionalidades, duma política nova, fundada no respeito dos povos e culturas.
Porém, a imputação de Césaire estabelecia, claramente, que não se tratava de uma revolução nos métodos (nem sequer de pessoas), mas uma mudança radical nos fundamentos políticos. É exactamente aqui que reside o âmago da desfeita: o Estado pós-colonial não trapaceia com os seus princípios, renunciou a eles. Não se trata simplesmente de mudanças das circunstâncias históricas, das alianças políticas, das estratégias de luta, mas uma mudança radical: as frelimos, os mplas, os paigcs , os ancs (…) vergaram – enfeitiçados pelo mercado (K. Marx), principal vector da teologia neoliberal – e renunciaram aos seus valores primordiais. A paz, o progresso e a felicidade dos povos, como matriz axiológica da sua existência, já não constituem a sua prioridade, nem sequer fazem parte da sua agenda…
Para os actuais convertidos à pecuniocracia – como outrora para as elites coloniais – não é no plano horizontal (democrático) da Ágora que se acede à verdade e se faz sociedade, mas na fuga de indivíduos e ‘gangues’ para fora da caverna Platónica, donde extraem uma concepção de poder de tipo pastoral, coercivo e uma omnipresença disciplinar e burocrática do governo; uma política de fabricação de indivíduos dóceis e obedientes.
Césaire escolheu, voluntariamente, estar ao lado dos vencidos da História. As elites pós-coloniais (oriundas do lado dos vencidos), por vontade própria, saltaram a cerca, e tornaram-se outros do povo: tiranos contra os quais, doravante, temos o dever de resistir!
E resistiremos!… Como dizia uma famosa canção dos tempos da primazia do Povo:
“Custe o que custar
Lutamos pela causa da Liberdade…”
Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Eva Trindade, Carlos Carvalho