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Economia contra a felicidade dos povos?

ensaio de Severino Ngoenha, Thomas Kesselring, Carlos Carvalho

O economista  Thomas Piketty autor d’ O Capital no Século XXI – que lhe valeu muitos reconhecimentos internacionais – desconfessa toda a démarche  de uma ciência económica que pretenda se distanciar das outras ciências sociais, nomeadamente da historia e da sociologia. A estas podemos  acrescentar a filosofia que apesar da sua linguagem, aparentemente  hermética (Ortega e Gasset), postula verdades, algumas vezes, cartesianamente claras e distintas, úteis aos procedimentos epistémicos das ciências, mas sobretudo necessários para dar sentido à existência. Blaise Pascal, nos Pensées, enuncia, categórico,  que  “todos os homens procuram ser felizes”: o garimpeiro como o acionista de uma mina, o parlamentar como o trabalhador com salário mínimo, o reitor da universidade como o servente – podem até ter concepções e meios diferentes, mas todos buscam  a própria eudemonia.

Pode parecer cínico e paradoxal, mas até os traficantes e exploradores de sexo na prisão de Ndlavela estavam à procura do que lhes parecia a própria felicidade. Ninguém pode condenar ninguém por buscar a própria realização, mas a questão é: até que ponto é moralmente lícito que eu instrumentalize os outros para a minha auto-realização? Esta questão é também extensiva à economia como à política.

O que é válido para o indivíduo o é também para as colectividades; povos, sociedades e culturas. É difícil imaginar um líder político ou espiritual que possa ser considerado grande, se a acção de um ou a doutrina do outro só trouxerem desgraças para os seus súbditos ou seguidores. A felicidade, sem cair no extremismo doutrinal de Jeremy Bentham, não pode ser dissociada da utilidade, uma vez que é impossível aceder a ela sem alguns elementos constitutivos: bens materiais e imateriais, sem as quais a vida não parece digna de ser vivida.

A nossa  geração – mesmo no nosso paupérrimo Moçambique – vive em condições melhores do que toda e qualquer geração antes da nossa: sem colonialismo, com algum democratismo, com rudimentos de escolarização, com a esperança de sobrevivência a aumentar e a mortalidade infantil a estagnar. Entretanto, apesar das nossas condições, relativamente privilegiadas, não somos necessariamente mais felizes do que gerações precedentes; isso talvez seja devido às ambiguidades aporéticas da globalização liberal na qual fomos fagocitados. O progresso tecnológico ao mesmo tempo que traz grandes avanços, multiplica também exigências e produz novas ameaças: sociais, políticas, militares e até ecológicas.   A economia capitalista – que hoje afecta todos os países – caracteriza-se pela propriedade privada dos meios de produção e pela concorrência no mercado, onde os investimentos devem gerar lucros (mesmo em detrimento dos outros homens, povos e da saúde pública);  a economia é suposta crescer indefinidamente (como nos trinta gloriosos na Europa ocidental e no Japão) embora o planeta e os recursos sejam limitados.

A concorrência económica, à primeira vista, reduz os custos mas com a globalização e a privatização de bens e serviços comuns, pode ser contraproducente e subtrair as liberdades e a democracia, pilares da realização de um ideal colectivo (Agamben). Com todos os cabos de fibra-óptica da Internet em sua propriedade, as gigantescas empresas privadas americanas – Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft – podem monitorar, controlar e até influenciar a vida dos cidadãos do mundo inteiro.

Como defende Ernest Ulrich von Weizsäcker, a teoria do mercado globalizado baseia-se em premissas erradas e comporta falhas graves; a felicidade humana não cresce em paralelo com o produto nacional bruto. Desastres graves como o Idai e o Kenneth, que mataram populações e mortificaram cidades, foram ocasiões para especulações por parte de governantes, ONGs e confissões religiosas desonestas; requereram serviços funerários, advogados, seguradoras (o que, paradoxalmente, contribuiu para o crescimento da economia). As indústrias farmacêuticas, aproveitando-se das nossas desgraças pandémicas, fazem lucros ingentes; e o que dizer dos preços especulativos praticados por algumas clínicas na cidade do Maputo que desonram, hipocritamente, o   juramento de Hippocrates?  A todos esses se juntam os bancos que emprestam dinheiro a pequenos empresas em dificuldade, com juros de usura.

Na esteira de Amartya Sen  (Prémio Nobel de Economia em 1998) desde 1988, a ONU tem vindo a comparar países, não pelo produto nacional bruto mas pelo progresso social:  “Felicidade Nacional Bruta” em vez do produto nacional bruto. Desde 2012 existe um Relatório Mundial da Felicidade e um Índice Mundial da Felicidade e Bem-Estar, classificando os países de acordo com a satisfação dos seus cidadãos, o Buen Vivir, título de um bestseller de Alberto Acosta. Sem surpresas, os países mais ricos não são necessariamente os mais felizes. Os nossos endinheirados deveriam reflectir sobre isso…

 Adam Smith (pai da economia política) defendeu que o mercado, agindo como a “mão invisível”, transforma interesses egoístas em ganhos sociais, o que aumenta o bem-estar dos cidadãos – mas só num mercado gerenciável. Os exemplos que Adam Smith deu referem-se à troca de mercadorias de pequenos produtores num mercado limitado e não no mercado mundial, que nem sequer existia no seu tempo. Segundo von Weizsäcker, para que o mercado seja proveitoso para todos, é necessário “que o alcance geográfico do direito e da moral seja igual ao alcance geográfico do mercado”. Contrariamente aos economistas neoliberais, que apelam ao desregulamento com um mínimo de leis do Estado ou até sem elas,  Smith preconizava que os actores do mercado respeitassem as normas morais e as leis do Estado. 

A “vantagem comparativa de custos”, estabelecida por David Ricardo (1772-1823) também foi deturpada. Ricardo propôs que cada país se especialize na produção daquilo que pode produzir a custos mais baixos do que outros. Portugal, por exemplo, deveria produzir vinho e a Inglaterra linho; dado que  aqui o clima era inadequado para o cultivo de vinho, e na tuga a fabricação de linho era comparativamente cara, a troca beneficiaria ambos os países . Porém,  quando desistiu da sua produção de linho, Portugal saiu-se mal, o que os sucessores de Ricardo não tomaram em consideração. Pior, a doutrina de Ricardo é deturpada até num aspecto fundamental, na medida em que ele acreditava que  nem o capital nem o trabalho deveriam atravessar fronteiras: os ingleses eram supostos produzir linho com o capital próprio e os portugueses cultivar videiras também com o seu  dinheiro; ele nunca supôs que os ingleses investissem em Portugal e vice versa, o que se tornou regra  na economia globalizada.   Hoje o capital flui para onde se pode produzir com menos custos, maximizando o lucro dos investidores  mas em detrimento do bem estar das sociedades anfitriãs. A perversão chega ao seu cúmulo quando moçambiques, pelo mundo fora, são obrigados a ceder terras agrícolas aos pro-savanas do planeta (land  grabbing) para produzirem soja para os nipones globais.   

Não menos importante, os economistas sobrestimam a importância da concorrência e manipulam, de modo economicista, a biologia evolutiva de Darwin. O explorador inglês – que nunca foi darwinista – sabia que “a diversidade das espécies vai de par e passo com uma diversidade de locais e habitats”. Por isso, “a competição a que ele se referia era sobretudo um fenómeno local”; na natureza, a pressão competitiva permanece, quase sempre, regional. A teoria da evolução nunca afirmou que os elefantes indianos poderiam competir com os elefantes da  reserva do Maputo ou que os ngoenhas do Limpopo incomodariam os do lago Niassa . 

 A concorrência económica – hoje globalizada – é destrutiva. No século XIX a Inglaterra aprendeu da Índia a produzir têxteis de alta qualidade a baixo custo e construiu uma indústria têxtil que destruiu os mercados indianos. A China, na última década, copiou do Ocidente a construção de fotovoltaicos e depois  fabricou-os com preços muito mais baixos fazendo claramente dumping  de preços.  Hoje a nova Rota da Seda (One Belt, One Roat) compreende a destruição das nossas florestas, o empobrecer dos nossos mares para além de encher-nos de dívidas – que até preocupam o FMI – que não sabemos quando e como pagar.

Darwin também não sugeriu que os antílopes do Krüger Park devessem recorrer à ajuda dos antílopes da Gorongosa para lutar contra os leões. Hoje, muitas vezes, o conluio entre empresas de diferentes países (ricos) boicota o desenvolvimento económico de países pobres. A associação mafiosa de um banco suíço e um banco russo com uma empresa franco-libanesa de construção naval (apadrinhada pelo poder político, com a cumplicidade de changues, nhangumelos  e seus chefes), fez atrasar ou até inverter o desenvolvimento social de Moçambique .

Estes erros crassos são hoje admitidos pela maioria de economistas mas sobretudo vividos  na pele por milhões de homens e de povos. Por isso, se não quer ser causa, ou concorrer, para a infelicidade do povo, o nosso “complexo político-económico” deve-se proibir de espoliar os camponeses das suas terras (lares, fontes de renda e subsistência, demora e memória dos antepassados) e condicionar toda e qualquer exploração dos recursos– pelas TOTALs, ENIs, VALEs,  SASOL s, RUBY MININGs… – à partilha ex aequo dos lucros com as populações. 

Entre os vários motes que animaram as lutas pelos direitos, o da CONCP – escrito por Cabral n’ A Arma da Teoria – é sobremaneira filosófico: ele vai para além das dimensões do espaço e do tempo e deveria inspirar a nossa e toda a política com regime de verdade (Jacques Ranciere): 

Paz, Progresso e FELICIDADE DOS POVOS 

Severino Ngoenha, Thomas Kesselring, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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