ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti e Carlos Carvalho
‘Elogio da consciência’ é talvez o melhor título que se pode dar a um gênero literário iniciado pelo italiano Italo Svevo com A consciência de Zeno, publicado em 1923, e seguido pelo alemão Musil, com O Homem sem Qualidade.
Trata-se de um literatura que emerge numa Europa dilacerada por conflitos de identidades – depois desaguando na trágica Segunda Guerra Mundial – que captou a essência da crise da modernidade, cujos temas foram depois recuperados e desenvolvidos nos anos 1970 pela crítica pós-moderna de Jean François Lyotard.
Zeno Cosini, o protagonista do romance de Svevo, é um doente psíquico que sabe sê-lo, contrariamente aos seus próximos que também o são, mas não tem consciência disso. A consciência da sua condição de inepto (doente) permite a Zeno melhorar e até ultrapassar a sua condição de doente. Enquanto isso, os falsos normais soçobram numa demência sempre mais aguda.
No mesmo diapasão, em O homem sem qualidades de Musil, o matemático Ulrich, por ter consciência de não possuir nenhum talento particular, consegue desenvolver capacidades de adaptação às diferentes situações da vida, que os mais capazes e dotados não estão em condições de enfrentar.
Bem antes da literatura moderna e contra a Paideia grega (educação para a bravura e a guerra), a filosofia surgiu reivindicando para si o papel de consciência na vida em comum, na defesa do humano, dos seus direitos e da vida.
Sócrates – o seu fundador putativo – foi condenado em 399 a.C. por trazer à tona a crise da democracia e da ética públicas de Atenas, da sua corrupção e decadência, representando a consciência crítica e aberta que os governantes da polis não queriam ouvir.
A fundamental questão filosófica de hoje pode ser resumida no grafitti que ornamentava a casa de Desmond Tutu na Cidade do Cabo durante o processo de reconciliação: How to turn human wrongs into human rights?
Na luta pelos Diretos Humanos, o Bispo Tutu foi precedido por um outro prelado, do chamado bispo dos chiapas, Bartolomeu de Las Casas (1474 ou 1484- 1566) que, depois de num primeiro tempo ter sido adepto da colonização espanhola, tornou-se, por causa da escravatura e da violação dos direitos a que os índios eram submetidos, o porta voz e denunciador da brutalidade antagónica de uma consciência infeliz da colonização (como dirá Hegel três séculos depois), até se tornar, contra Juan Genés de Sepúlveda, no protagonista absoluto do que é hoje considerado o primeiro debate sobre os Direitos Humanos – controvérsia de Valladolid (1550 a 1551) – bem antes das famosas Declarações Universais.
Ainda nas Américas, foi em defesa dos direitos dos mais pobres que o Bispo Oscar Romero foi assassinado e D. Helder Câmara se tornou a voz dos sem voz, no interior de uma teologia de libertação – representado por Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Juan Luis Segundo – que (para além dos debates de ortodoxia doutrinal) exerceu uma importante função de consciência crítica numa sociedade desigual e injusta, a que governos autoritários como os do Chile de Pinochet, de Varela na Argentina ou do Brasil da ditadura militar não davam vazão.
Em Moçambique, primeiro D. Soares Resende na Beira e depois D. Manuel Viera Pinto em Nampula, contrapuseram-se à política colonial. D Jaime, D. Alexandre e a primeira conferência episcopal de Moçambique independente militaram, activamente, primeiro contra os excessos do regime socialista e depois contra a guerra e a favor da reconciliação.
James Cone, pai da ‘black theology of liberation’ dizia que Deus é negro, não referindo-se a qualquer biologismo ou epiderme da pele, mas subentendendo que o Deus da Bíblia está ao lado dos oprimidos, dos que sofrem. E perguntava-se, quem são os oprimidos na América?
Quem são os que sofrem em Cabo Delgado? Que incrível Bispo seria esse que não estivesse ao lado daqueles com quem está o Deus em quem ele crê?
Deste lado, e do lado da filosofia, um ‘Hurrah!’ de honra ao senhor D. Luís Lisboa que soube estar ao lado desses novos judeus, expulsos em nome de petrodólares da sua Mocímboa prometida e que eram a busca de uma mangedora; pobres que com o seu sofrimento clamam pelo direito e pela justiça.
Como já defendia Hannah Arendt, a política sempre vai precisar da filosofia, apesar de por vezes ela “incomodar”. Quando esta relação se corta, a política cai na barbaridade. Por outro lado, uma filosofia sem política se torna mero formalismo, simples exercício conceitual desprovido de um pensamento “forte” e crítico, necessário para que as diversas sociedades, a partir das africanas, adquiram consciência das suas doenças para curá-las e oferecer vidas melhores aos seus concidadãos.
Por isso, hoje, num país como Moçambique, classificado como um dos mais corruptos do mundo e recentemente denominado de “Estado autoritário”, se torna cada vez mais importante que a política não se separe da filosofia – a qual exerce o papel de consciência crítica – e de outras vozes diferentes e plurais.
Os filósofos (e de uma maneira geral, os intelectuais) não constituem nenhum perigo para a ordem social. Não somos niilistas nem anarquistas. Não somos perturbadores da ordem social, somos amantes da busca de um saber capaz de participar na edificação de uma melhor comunidade (cum munia) moçambicana, de uma sociedade garante da sua independência, capaz de assegurar progressivamente o bem-estar de todos os moçambicanos.
A nossa sociedade tomou a opção de enveredar pelo caminho da liberdade de pensamento e de diálogo, as disposições orientadas a promover a vida intelectual tornaram-se direitos. Existe, da nossa parte, um dever de respeito in primis para com a ordem social que resulta da adesão (mesmo se crítica) às instituições, aos seus representantes e à ordem colectiva. O respeito não pode e não deve ser confundido com receio ou com medo.
O respeito não significa inibição de refletir, estudar, analisar, de questionar sobre o que respeitamos. Respeitar significa antes de mais, reconhecer o valor das nossas instituições, dos seus representantes e da ordem social e mesmo do ideal que eles representam.
Um dos nossos maiores desafios é fortificar a democracia, e por conseguinte a política, na sua relação com a ética. Vale a pena recordar que o sentido da política em Aristóteles é a cidade óptima: a que pratica o bem comum.
Podemos, como Zeno, reconhecer as nossas enfermidades, o que nos dá alguma possibilidade de cura, ou ignorá-las com a certeza de acabarmos então por soçobrar em demências ainda maiores…
É tudo uma questão de consciência (James Baldwin, Kwame Nkrumah, Steve Biko…)!
ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti e Carlos Carvalho